Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Em pleno mês de junho

Em pleno mês de junho
Pablo Neruda no livro Últimos Poemas

Em pleno mês de junho
me aconteceu uma mulher,
melhor uma laranja.
Está confuso o panorama.
Bateram à porta,
era uma lufada,
um látego de luz,
uma tartaruga ultravioleta,
a via com lentidão de telescópio,
como se longe fosse ou habitasse
esta vestidura de estrela,
e por erro do astrônomo
houvesse entrado em minha casa.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Hoje

Hoje
Waly Salomão no livro Algaravias


O que eu menos quero pro meu dia
polidez, boas-maneiras.
Por certo,
um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignoro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)

Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.

não está prevista a emissão
de nenhuma "Ordem do dia".
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP - Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d'água
dão saltos bruscos do cano da torneira
e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
aleatória.

Hoje...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cantar charqueada

Cantar charqueada
Oliveira Silveira no livro Pêlo Escuro

Até eu cantei charqueada
chorando a sorte do boi.

Mas descobri que meu canto
tem raízes noutro campo:
por trás das cancelas mudas,
por trás das facas agudas.

Meu canto é uma carne escura
charqueada a relho na salga;
é figura seminua
junto às gamelas de salga.

Carne escura exposta ao vento
dos varais do saladeiro
exposta viva ao sol quente
e suas facas carneadeiras.

Carne que se compra e vende
e de bem longe se importa
se salga, seca e só perde
quando já é carne morta.

E meu canto é dessa carne
que não é minha e me dói
sangrando no sol da tarde
de um tempo que enfim se foi.

Cabe a mim cantar charqueada
chorando a sorte do boi?

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Nosso tempo

Nosso tempo
Carlos Drummond de Andrade, trecho do poema no livro Amar Amaro.

I

Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Rafaela

Rafaela
Belizario, outono 10.

Rafaela.
Bem vinda ao mundo linda guria.
Ah, não sabes o quanto te esperávamos...
Redenção de nossos sonhos...
tantas vezes embriagados sonhos...
de utopia...
Sentados na calçada,
os pés na pedra úmida...
eu e teus pais ríamos a beça...
Brincávamos...cantávamos...
talvez eles não se imaginassem juntinhos um dia.
Mas tu, a criança que viria,
redentora de nossos delírios,
sementinha pequenina,
de fortes raízes,
que germinaria,
ah, isso escrevemos tantas vezes
nas estrelas daquelas noites,
daqueles dias,
com tinta de luta, amor e rebeldia.
Tua mãe, forte mulher,
caminhava pelas ruas, procurando flores para provar e dizer: tu quer?!
Teu pai, homem adorável,
sensibilidade com a voz,
com os dedos no violão,
me fazia sorrir e insistia: é preciso mudar tudo isso negão!
Vim aqui dizer-te
que estou aqui pro que der e vier,
teus pais, meus irmãos,
tu, minha sobrinha,
é preciso paixão...ah, se é preciso...
Como sagitário guerreiro, a postos sempre estarei,
para quando precisares de um abraço, afago...
um sorriso cúmplice...ou apenas o silêncio em compania...
do teu tio e amigo,
eternamente,
com gosto de flores, violão e utopia.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Nós dois

Nós dois
Cartola

Está chegando o momento,
de irmos pro altar...
Nós dois!
Mas antes da cerimônia,
devemos pensar em depois.
Terminam nossas aventuras.
Chega de tanta procura.
Nenhum de nós deve ter
mais alguma ilusão.
Devemos trocar idéias,
e mudarmos de idéias...
Nós dois!
E se assim procedermos,
seremos felizes depois.
Nada mais nos interessa,
sejamos indiferentes.
Só nós dois, apenas dois,
eternamente.


http://www.youtube.com/watch?v=yBv5bBTzAWA&feature=player_embedded

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A vida vale a pena

A vida vale a pena
Ferreira Gullar no livro Dentro da noite veloz

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena.

como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Devaneio matinal

Devaneio matinal
Belizario, Primavera 09.

Hoje, acordei torto.
Ainda sinto a tua falta.
Me alegra ver,
que pelo menos em meus sonhos
nos reconciliamos.

Ainda há espaço pro sonhar!

Nessa doentia esperança,
manipulação de mim mesmo,
contínuo e descontínuo devaneio...
do verbo amar!

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A lavadeira

A lavadeira
Cora Coralina no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

Essa mulher...
Tosca. Sentada. Alheada...
Braços cansados
descansando nos joelhos...
olhar parado, vago,
perdida no seu mundo
de trouxas e espuma de sabão
- é a lavadeira.

Mãos rudes, deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico
barato, memorial.

Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta
- uma espumarada branca de sabão.

Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor,
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo,
vestindo o quaradouro
de cores multicores.

Essa mulher
tem quarentanos de lavadeira.
Doze filhos
crescidos e crescendo.

Viúva, naturalmente.
Tranquila, exata, corajosa.
Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada no seu mundo pobre.

Madrugadeira.

Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
entre trouxas e barrelas.

Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce
trabalham suas mãos pesadas.

Seu mundo se resume
na vasca, no gramado.
No arame e prendedores.
Na tina d'água.
De noite - o ferro de engomar.

Vai lavando. Vai levando.
Levantando doze filhos
crescendo devagar,
enrodilhada no seu mundo pobre,
dentro de uma espumarada
branca de sabão.

Às lavadeiras do Rio Vermelho
da minha terra,
faço deste pequeno poema
meu altar de ofertas.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Começaria Tudo Outra Vez

Começaria Tudo Outra Vez
Gonzaguinha

Começaria tudo outra vez
Se preciso fosse, meu amor
A chama em meu peito
Ainda queima, saiba!
Nada foi em vão...

A cuba-libre dá coragem
Em minhas mãos
A dama de lilás
Me machucando o coração
Na sêde de sentir
Seu corpo inteiro
Coladinho ao meu...

E então eu cantaria
A noite inteira
Como já cantei, cantarei
As coisas todas que já tive
Tenho e sei, um dia terei...

A fé no que virá
E a alegria de poder
Olhar prá trás
E ver que voltaria com você
De novo, viver
Nesse imenso salão...

Ao som desse bolero
Vida, vamo nós
E não estamos sós
Veja meu bem
A orquestra nos espera
Por favor!
Mais uma vez, recomeçar...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Soy mi huésped

Soy mi huésped
Mario Benedetti no livro Preguntas as azar

Soy mi huésped nocturno
en dosis mínimas
y uso la noche
para despojarme
de la modestia
y otras vanidades

aspiro a ser tratado
sin los prejuicios
de la bienvenida
y con las cortesías
del silencio

no colecciono padeceres
sin los sarcasmos
que hacen mella

soy tan sólo
mi huésped
y traigo una paloma
que no es prenda de paz
sino paloma

como huésped
estrictamente mío
en la pizarra de la noche
trazo una línea
blanca

luego soplo mi brisa
y los postigos y las ramas
tiemblan

como huésped de mí
sé de mí lo que pienso
no es gran cosa

armo mis barricadas
contra el sueño
a pesar de que el sueño
las derribe

soy mi huésped
a qué regarlo
pero
a veces también soy
un extraño de mí

cuando mi rústico
anfitrión
me mira
siento que estoy
demás
y me escabullo

sábado, 15 de maio de 2010

Eu apresento a página branca

Eu apresento a página branca
Arnaldo Antunes no livro Tudos

Eu apresento a página branca.

CONTRA:

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

Contra a água.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lamento Sertanejo

Ontem, fiz as pazes com aquele outro homem negro.
Lembro-me muito bem quando brigamos.
Ele havia ído a Satolep naquelas coisas de poder...reinaugurar um monumento. O monumento estava revitalizado. Um chafariz europeu sob os vestígios do pelourinho, martírio do meu povo e de tantos outros.
Fiquei enfurecido...como aquele homem negro que cantou tantas coisas bonitas dos nagôs, gegês, poderia esquecer de tudo...
Lembro que saí a caminhar...fazia frio...numa bodega ouvi um som...era um rádio...o homem falava...o povo aplaudia...entristeci-me...me lagrimei.
Anos depois consegui perceber que não avisaram o homem daquilo tudo...do que existia ali...depois daquilo, o homem negro foi o primeiro que teve no poder cantando os ditos populares...incentivando-os...respeitei.
Ontem, nos olhamos cúmplices...vi que ele cantou pra mim, eu pra ele...fazíamos as pazes.
O homem negro não precisou fazer discursos...sua música, sua ginga, sua cantoria, era o próprio povo negro, mameluco, branco, colorido...povo esguio...de gente sofrida que não perde fé na vida.
Sabe, ainda acho que eu e ele viemos no mesmo navio...
Obrigado Gilberto Gil!


Lamento Sertanejo
Gilberto Gil e Dominguinhos

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.

Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo.
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo.

Naveguei

Ontem falhei o post diário pela primeira vez.
Andava navegando por outros portos...retornava ao rio Nilo...quando avistei.
O tempo parou. Atraquei.
Logo percebi que como dizia o poeta, o tempo não pára não. Que bom...experiências...avante siempre!
Voltei ao rio, levantei a âncora...feliz, naveguei...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Carlos Drummond de Andrade

A Carlos Drummond de Andrade
João Cabral de Melo Neto no livro o Engenheiro

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Rumo ao sumo

Rumo ao sumo
Paulo Leminski no livro La vie en close

Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.

Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Só você manda em você

Só você manda em você
Vitor Ramil

Um papo breve e tão sutil
Depois de tudo, me confundiu
Eu tô de novo na chuva, oh!
Você em terra firme
Sempre certa do que dizer
Pois só você manda em você

Pássaro tão só no fio de luz
Canta uma canção que me seduz
Eu me pareço com ele, oh!
Cantando só pra você
Que nem ao menos pode me ouvir
Eu canto pra me consumir

O tempo é uma nave que corre demais
Mas reconheço o que deixamos pra trás
Eu posso mudar, eu juro, oh!
Mas que poder você tem!
Posso mudar pra valer
É só você também querer

O amor é simples, fácil dizer
Você sempre soube disso, acabo de aprender
Também sei onde te encontro, oh!
Talvez no quarto de alguém
Mas não vai me custar entender
Pois só você manda em você

Noite escura, raios no ar
Qual o sentido de tanto andar
Eu tô vagando na chuva, oh!
A dor vagando em mim
Como um tiro no coração
Desde o começo dessa canção

domingo, 9 de maio de 2010

Canção de Agora

Canção de Agora
Lila Ripoll no livro Coração Descoberto

Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

sábado, 8 de maio de 2010

Meus avós

Meus avós
Belizario, em alguma estação de 98.

Minha avó eu não conheci.
E ela também não me conheceu.
Fico imaginando como ela teria sido...
Alegre, braba, divertida, chata...
Não sei.
Mas ela seria a minha avó!
Meu avô eu conheci.
E ele também me conheceu.
Ele era...
Alegre, brabo, divertido, chato...
E ele era meu avô!
Enquanto ele estava ao meu lado,
eu quase não o curti...
Agora, me entristeço cada vez que penso nisso...
Eu quase não o curti!
A janela, o opala, o cigarro...
Tudo rimava com o "velho" solitário.
Que sofreu 17 anos,
esperando o dia do reencontro com a "velha".
Agora os dois estão juntos...se amando.
A vida é curta,
temos que curtir todas as pessoas,
como se fosse o último dia...
Meu avô,
minha avó...
Um dia sentaremos na mesma mesa,
e conversaremos sobre a vida.
Lembraremos tudo que não fizemos e curtimos,
deixando para o outro dia...
Lourival e Anita!

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Desejar ser

Desejar ser
Manoel de Barros no livro Livro sobre nada

Não é por gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor.
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O poeta

O poeta
Rainer Maria Rilke no livro Dos novos poemas

Vai-te para longe de mim, hora.
O bater de tuas asas me excrucia.
Mas de minha boca, que fazer agora?
e da minha noite? e do meu dia?

Eu não tenho amada nem abrigo,
sequer um lugar para viver eu tenho.
Todas as coisas em que me empenho
tornam-se opulentas e acabam comigo.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Do meu aposto

Do meu aposto
Lúcio Xavier

Me deixa passar pela fenda...
Daquela porta.
É só isso que peço.
Qual desejo, mais, esse corpo não comporta?
Além do dito,
Não me queira tão confesso.
Cansei de tanto compasso
Pra medir meu passo;
Pagar teu preço
Com dor que não mereço.
Ao inferno com a tua ameaça!
Minha vontade é bem menor
Que a tua ânsia,
Devassa.
Tira logo o pé da minha cabeça!
Aproveita o sangue que choro,
Da raiva que metaforo;
Antes que tudo te aborreça.
Essa vida
Já foi por demais vendida;
Não te vale as penas
De impedir a minha passagem;
Acredita, apenas,
No sofrimento gritando por coragem.
Te livra dessa casca vil
E costura de uma vez
O abismo que a tua boca abriu,
Com fome de altivez.
Por isso a fenda!
Antes o desespero último
Que a reles de uma contenda.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Soma de malogros, noves fora tudo

Soma de malogros, noves fora tudo
Thiago de Mello no livro Poesia Comprometida com a minha e a tua vida

Com desperdício de cores
selo o fim dos meus amores.
Amor pede ser começo
de si mesmo a cada instante.
Fico no fim que mereço.

Sei que perdi. Me apostei
inteiro. Mas aprendi
que não dependo (e ninguém)
só de mim para me dar.
É repartido que posso
vir um dia a merecer
a flama ardendo serena
que resolve a diferença
entre viver e morrer.

Sei que perdi. Mas ganhei.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Medieval

Medieval
Cazuza

Você me pede pra eu ser mais moderno
Que culpa que eu tenho
É só você que eu quero

As vezes eu amo e construo castelos
As vezes eu amo tanto que tiro férias
E embarco num tour pro inferno

Será que eu sou Medieval?
Baby, eu me acho um cara tão atual
Na moda da nova idade média.
Na mídia da novidade média.

Olha pra mim, me dê a mão, depois um beijo
Em homenagem a toda distância e desejo
Mora em mim que eu deixo as portas sempre abertas
Onde ninguém vai te atirar as mãos vazias nem pedras

Eu acredito nas besteiras que eu leio no jornal
Eu acredito no meu lado português sentimental
Eu acredito em paixão e moinhos lindos,
Mas a minha vida sempre brinca comigo,
De porre em porre vai me desmentindo

Será que eu sou Medieval?
Baby, eu me acho um cara tão atual
Na moda da nova idade média.
Na mídia da novidade média.

Boca, boca

Boca, boca
Belizario, outono 07

Entrou cintilante na sala
com a boca aberta,
o sorriso a posar pros meus olhos!
Logo eles se uniram aos dela.

Era olho, boca...
Boca, olho...
Boca, boca!
E eu a sorrir como garoto!

domingo, 2 de maio de 2010

Epigrama

Epigrama
Cecília Meireles no livro Mar absoluto e outros poemas

Pelo arco-íris tenho andado.
Mas de longe, e sem vertigens.
E assim pude abraçar nuvens,
para amá-las e perdê-las.

Foi meu professor um pássaro,
dono do arco-íris e nuvens,
que dizia adeus com as asas,
em direção às estrelas.

sábado, 1 de maio de 2010

Brasi de cima e Brasi de baxo

Brasi de cima e Brasi de baxo
Patativa do Assaré no livro Cante lá que eu canto cá

Meu compadre Zé Fulô,
Meu amigo e companheiro,
Faz quage uma no que eu tou
Neste Rio de Janeiro;
Eu saí do Cariri
Maginando que isto aqui
Era uma terra de sorte,
Mas fique sabendo tu
Que a miséra aqui no Su
É esta mesma do Norte.

Tudo o que procuro acho,
Eu pude vê neste crima,
Que tem o Brasi de Baxo
E tem tem o Brasi de Cima.
Brasi de Baxo, coitado!
É um pobre abandonado;
O de Cima tem cartaz,
Um do ôtro é bem deferente;
Brasi de Cima é pra frente,
Brasi de Baxo é pra trás.

Aqui no Brasil de Cima,
Não há dô nem indigença,
Reina o mais soave crima
DE riqueza e de opulença;
Só se fala de progresso,
Riqueza e novo processo
DE grandeza e produção.
Porém, no Brasi de Baxo
Sofre a feme e sofre o macho
A mais dura privação.

Brasi de Cima festeja
Com orquestra e com banquete,
De uísque dréa e cerveja
Não tem quem conte os rodete.
Brasi de Baxo, coitado!
Vê das casa despejado
Home, menino e muié
Sem achá onde morá
Porque não pode pagá
O dinhêro do alugué.

No Brasi de Cima anda
As trombeta em arto som
Ispiando as porpaganda
De tudo aquilo que é bom.
No Brasi de Baxo a fome
Matrata, fere e consome
Sem ninguém lhe defendê;
O desgraçado operaro
Ganha um pequeno salaro
Que não dá pra vivê.

Inquanto o Brasi de Cima
Fala de transformação
Industra, matéra-prima,
Descobertas e invenção,
No Brasi de Baxo isiste
O drama penoso e triste
Da negra necissidade;
É uma cousa sem jeito
E o povo não tem dereito
Nem de dizê a verdade.

No Brasi de Baxo eu vejo
Nas ponta das pobre rua
O descontente cortejo
De criança quage nua.
Vai um grupo de garoto
Faminto, doente e roto
Mode caçá o que comê
Onde os carro põe o lixo,
Como se eles fosse bicho
Sem direito de vivê.

Estas pequenas pessoa,
Estes fio do abandono,
Que veve vagando à toa
Como objeto sem dono,
De manêra que horroriza,
Deitado pela marquiza,
Dromindo aqui e acolá,
No mais penoso relaxo,
É deste Brasi de Baxo
A crasse dos marginá.

Meu Brasi de Baxo, amigo,
Pra onde é que você vai?
Nesta vida do mendigo
Que não tem mãe nem tem pai?
Não se afrija, nem se afobe,
O que com o tempo sobe,
O tempo mesmo derruba;
Tarvez ainda aconteça
Que o Brasi de Cima desça
E o Brasi de Baxo suba.

Sofre o povo privação
Mas não pode recramá,
Ispondo suas razão
Nas coluna do jorná.
Mas, tudo na vida passa,
Antes que a grande desgraça
Deste povo que padece
Se istenda, cresça e redrobe,
O Brasi de Baxo sobe
E o Brasi de Cima desce.

Brasi de Baxo subindo,
Vai havê transformação
Para os que veve sintindo
Abandono e sujeição.
Se acaba a dura sentença
E a liberdade de imprensa
Vai se legá e comum,
Em vez deste grande apuro,
Todos vão tê no futuro
Um Brasi de cada um.

Brasi de paz e prazê,
De riqueza todo cheio,
Mas, que o dono do podê
Respeite o dereito aleio.
Um grande e rico país
Munto ditoso e feliz,
Um Brasi dos brasilêro,
Um Brasi de cada quá,
Um Brasi nacioná
Sem monopolo istrangêro.

Preto Velho

Preto Velho
Cyro de Mattos no livro Cancioneiro do Cacau

Me ensinou,
sim senhor,
me ensinou,
com a sua figa,
cachimbo e pó,
o seu patuá
e fé maior,
escorraça
Satanás
e no mal
dá um nó.