Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sábado, 31 de julho de 2010

Amigo meu...

Amigo meu...
Belizario, inverno 10.

Amigo meu,
perdido...
Só hoje pude entender...
Na beira do fogão, agachado, olhando o reflexo de meus pés no vidro,
escutei aquelas músicas...
Eras poeta e eu não sabia...
Dizia saber, mas não sentia...
Meu tempo hoje, é teu tempo ontem.
Inocente, não pude entender...
Fiquei escondido naquele casulo que me amadureceu,
mas não existe mais.
Sinto saudade...
Da cumplicidade...dos sonhos...
Das conversas boas que faziam parar o tempo...ou curti-lo...
Como as cachacinhas que adorávamos fazer...e bebê-las.
Não sei mais onde andas...nem sei com quem...
Mas desejo profundamente reencontra-te...
Melhor numa esquina...total subversiva...
E poder dizer-te:
perdoa-me...ofereço-te meu abraço,
superei todos o mal entendidos...
Amigo meu, maravilhoso rememorar-te!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A duas flores

A duas flores
Castro Alves no livro Espumas Flutuantes

São duas flores unidas,
são duas rosas nascidas
talvez no mesmo arrebol,
vivendo no mesmo galho,
da mesma gota de orvalho,
do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
de um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
como a tribo de andorinhas
da tarde no frouxo véu...

Unidas, bem com os prantos,
quem em parelha descem tantos
das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
como as covinhas do rosto,
como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
numa eterna primavera
viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
na rama verde e florida,
Na verde rama do amor.

sábado, 24 de julho de 2010

Sou duro

Sou duro
Oliveira Silveira no livro Roteiro dos Tantãs

Sou duro, sou duro,
no fundo eu sou é duro
mas serei piedoso:
bendito o leão
que comeu o missionário...
Sou duro, eu sou é duro,
tenho minhas razões
mas serei caridoso:
bendito o canibal
que devorou a expedição...
Eu tenho meus motivos,
por isso é que sou duro,
mas serei generoso:
bendito o vidro moído
nos bofes do senhor,
bendita a lança, as balas
de Zumbi, do Haiti,
há muito tempo eu tenho os meus porquês
de ser duro, sou duro,
mas serei bom e dócil:
benditos os riots,
o saque, o fogaréu
e os raios afiados de Xangô
para os que me fizeram
(sou duro, eu sou é duro)
ter estas razões.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Bebê diferente

Bebê diferente
Batatinha

Muito bebê chora, chora pra comer!
Muito bebê chora, chora pra valer!
Eu como sou um bebê diferente,
E quando choro quero aguardente!!

Mamãe, mamãe, eu quero aguardente!
Mamãe, mamãe, estou tão contente!
Você bem sabe como é que a coisa vai,
Eu sou igualzinho a papai!!


http://www.4shared.com/audio/yk7Ef8da/Batatinha_-_Beb_Diferente.htm

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Reverso

Reverso
Lúcio Xavier

Duvido,
Que ainda haja tempo disposto.
Mirando no rosto,
Daquele que ainda intimido.

Um dia aguerrido,
Cerrava nos dentes desgosto,
Proposto,
Pra todo alarido um bandido.

Agora caído,
Suplica por mero recosto.
Apela pro gosto,
Que em mim ainda nota retido.

Esquece iludido,
Do vão dessa vida me imposto
E assim sobreposto,
Me arranca da dor um gemido.

Se julga traído,
Clamando por tempo lhe posto.
Recebe o reposto,
Por ter-me um dia perdido.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Chimarrão

Chimarrão
Música de Vitor Ramil do disco Délibab
Poema de João da Cunha Vargas

Velho porongo crioulo,
Te conheci no galpão,
Trazendo meu chimarrão
Com cheirinho de fumaça,
Bebida amarga da raça
Que adoça o meu coração.

Bomba de prata cravada,
Junto ao açude do pago,
Quanta china ou índio vago
Da água seu pensamento
De alegria, sofrimento,
De desengano ou afago.

Te vejo na lata de erva
Toda coberta de poeira,
Na mão da china faceira
Ou derredor do fogão,
Debruçado num tição
Ou recostado à chaleira.

Me acotovelo no joelho,
Me sento sobre o garrão
Ao pé do fogo de chão,
Vou repassando a memória
E não encontro na história
Quem te inventou, chimarrão.

Foi índio de pêlo duro,
Quando pisou neste pago,
Louco pra tomar um trago,
Trazia seca a garganta,
Provando a folha da planta,
Foi quem te fez mate-amargo.

Foste bebida selvagem
E hoje és tradição,
E só tu, meu chimarrão,
Que o gaúcho não despreza
Porque és o livro de reza
Que rezo junto ao fogão.

Embora frio ou lavado,
Ou que teu topete desande,
Minha alegria se espande
Ao ver-te assim meu troféu,
Quem te inventou foi pra o céu
E te deixou para o Rio Grande.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sem título...

Sem título...
Fernando Pessoa do livro Das coligidas

O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
ou diferente.
O homem não é um animal.
É uma carne inteligente.
Embora às vezes doente.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A flauta-vértebra

A flauta-vértebra
Maiakóvski no livro Poemas

A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balanço.
Em todo o caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
Esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lápide 2

Lápide 2
epitáfio para a alma
Paulo Leminski no livro La Vie en Close


aqui jaz um artista
mestre em desastres

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte

deus tenha pena
dos seus disfarces

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Soneto sem sentido da surdez repentina

Soneto sem sentido da surdez repentina
Belizario, inverno 10.

Surdo!!
Hã?! O que tu falou?!
Descobri uma forma de ouvir o violão...
encostar os dentes ao seu corpo...amplificado!
Só eu escuto...ou acho que escuto...não sei não...
Surdo!!
Hã?! É comigo?!
Naquelas horas em que não aguento mais as palavrinhas,
a surdez vira função esguia! Só escuto o que quero! É, talvez migalhas do que eu quero...desculpa fugidia...
Surdo!
Hã?! Seguir a vida?!
Retomarei minhas amizades,
serei útil todo início de mês,
na fila do banco ou jogando na loteria.
Surdo!!
Hã?! Musgo?! Sujo?!
Não, surdo mesmo! Vai limpar esses ouvidos,
já cansei de pedir,
não te faz de cera,
desgruda,
cansei de ser cotonete nessa vida!!