Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Mau sangue

Mau sangue
Arthur Rimbaud em trecho de Mau Sangue do livro Uma temporada no inferno

O sangue pagão retorna! Se o Espírito está próximo, por que Cristo não o ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o Evangelho caducou! O Evangelho! O Evangelho!
Aguardo Deus com gula. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Eis-me na praia provinciana. Que as cidades se acenderam de noite. Minha jornada terminou, abandono a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões, climas ignotos me curtirão. Nadar, desbastar verdes, caçar, sobretudo fumar; tomar bebidas fortes como metal fundindo, como faziam nossos caros ancestrais em volta do fogo.
Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso; pela máscara, me julgarão raça forte. Terei dinheiro; vou ser ocioso e brutal. As mulheres cuidam dos ferozes doentes de volta dos países tropicais. Entrarei nos negócios políticos. Serei salvo.
Por ora sou maldito, tenho horror da pátria. O melhor é um sono bem bêbado na praia.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Reforma Agrária

Reforma Agrária
Patativa do Assaré no livro Ispinho e Fulô

Pobre agregado, força de gigante,
Escuta amigo o que te digo agora,
Depois da treva vem a linda aurora
E a tua estrela surgirá brilhante.

Pensando em ti eu vivo a todo instante,
Minha alma triste desolada chora
Quando te vejo pelo mundo afora
Vagando incerto qual judeu errante.

Para saíres da fatal fadiga,
Do horrível jugo que cruel te obriga
A padecer situação precária

Lutai altivo, corajoso e esperto
Pois só verás o teu país liberto
Se conseguires a reforma agrária.

sábado, 28 de agosto de 2010

Pescador

Pescador
Cyro de Mattos no livro Cancioneiro do Cacau

As escamas azuis
na rede da infância,
antigos pescadores
traziam as canoas
carregadas de peixe.

Hoje
malhas longínquas
na tarde sem voz
pescam lembranças.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Canção da amabilidade

Canção da amabilidade
Bertolt Brecht no livro Poemas e Canções

Pisar o semelhante,
não será fatigante? Em vossa fronte
incham as veias com o esforço da cobiça.
Aberta ao natural
a mão oferta e recebe com facilidade igual.
Só a ânsia de agarrar é que causa a fadiga. Ah,
que alegria, dar algo! Como é bom
ser amável - uma palavra boa
é como um leve suspiro que voa!

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Poço

O Poço
Pablo Neruda

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Deixa esse leque!

Sempre gostei de contar histórias, e num desses portos que andei atracando, me emocionei relembrando aqueles malungos...e não é que a dona Memória apareceu!
Com seu saco de arrasto, e aquela gaita a tocar, me jogou pra fora do tempo...senti o cheiro daquela casa...um som que vinha distante...marcado...era o Sopapo! Todos aqueles malungos ainda jovens ao lado...e crianças e velhos contentes a dançar...é, aquela casa durante aqueles anos foi com certeza muito, mas muito engraçada...Senti um toque no meu braço....dona Memória me trazia de volta ao tempo...o som ficava cada vez mais longe...ainda lembro dessa música...

Deixa esse leque!
Belizario e Barbosa, primavera 02.

Deixa esse leque!
Deixa esse leque...deixa esse leque!!

Os ventos que assopram esse leque,
são os mesmos que assopraram o navio negreiro!
Os burgueses que balançam esse leque,
são os mesmos que encomendaram o navio negreiro!

Tirados, retirados das terras do além mar,
o negro pelotense não parou de batucar!

E pensar,
superar,
questionar
e lutar!

Deixa esse leque!
Deixa esse leque...deixa esse leque!!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Negra Teia

Negra Teia
Lúcio Xavier

Puro sofrimento,
que narrado.
Aproveita o lucro da noite
e duela com o grito,
já estancado.
Se joga em cego,
na cidade correndo,
se aflige retendo
do sangue ao prego.
Quando segue negra,
de olhar despido,
tece a negra teia
e o jugo morre,
arrependido.
No curvo maquinário humano,
é fio perdido;
em negro dorso,
cativo em corso
é ponto unido.
Se o ferro do patrão,
que hoje brilha,
reluz clarão,
sai mais ao dente,
que morde a linha
ou se independe.
E a negra em dor
no espasmo nega;
a teia em passo,
pra compor num traço
que do pavor,
em teia pega.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

No te salves

No te salves
Mario Benedetti no livro Antologia Poética
 
No te quedes inmóvil
al borde del camino
no congeles el júbilo
no quieras con desgana
no te salves ahora
ni nunca
no te salves
no te llenes de calma
no reserves del mundo
sólo un rincón tranquilo
no dejes caer los párpados
pesados como juicios
no te quedes sin labios
no te duermas sin sueño
no te pienses sin sangre
no te juzgues sin tiempo

pero si
pese a todo
no puedes evitarlo
y congelas el júbilo
y quieres con desgana
y te salvas ahora
y te llenas de calma
y reservas del mundo
sólo un rincón tranquilo
y dejas caer los párpados
pesados como juicios
y te secas sin labios
y te duermes sin sueño
y te piensas sin sangre
y te juzgas sin tiempo
y te quedas inmóvil
al borde del camino

y te salvas
entonces
no te quedes conmigo.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Negrinho do Pastoreio

O Negrinho do Pastoreio
João Simões Lopes Neto em trecho do conto no livro Lendas do Sul

Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.

Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...

E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…

Então, muitos acenderam velas e rezaram o Padre Nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.

***

Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.

***

Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.

O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.

Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo —Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O encontro noturno do gato egípcio com o andarilho

O encontro noturno do gato egípcio com o andarilho
Belizario, outono 07.

Viver é isso.
Atirar-se, cair, refazer-se a cada dia.
Ontem conheci uma menina.
Seria simples demais descrever como linda.
Ah, mas como é bonita!

Me disse que era uma princesa egípcia,
E a senti delicada.
Mas o que me impressionou foram seus olhos,
De gato!
Sabe,
Aqueles olhos desconfiados, enigmáticos?!
Olhos insatisfeitos,
De mulher que quer se atirar na vida,
Que quer de qualquer forma ser feliz, ser "gauche", ah, bendita menina!

Como disse, olhos de gato,
Mente de gato!
Que anda pelos telhados, insatisfeito,
E quando todos pensam que perdeu o equilíbrio,
Se mostra mais destemido que qualquer bicho!
E se bicho homem me faço e existo,
Naqueles olhos mergulho,
Como nas minhas andanças noturnas,
Acompanhado pelos gatunos,
Me fragmentando, por vezes medroso,
Por vezes destemido.
Observado, protegido
por este delicado gato egípcio!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Se

Se
Giordana Porrat

Se o mundo te der limões:
Faça uma revolução;
Jogue-os na cara de quem te deu.
Se o mundo te der tormenta
Ria dele e diga a verdade:
“_ Não sou nada mais que um pequeno grão!
Se, vem a ventania, eu vôo;
Se, a chuva chega, eu bóio;
Se, pisam em mim, eu incomodo até o fim.”
Quando o mundo passou a ser um obstáculo?
Por que foi que abandonamos
As matas e os rios,
Para nos cercar de concreto e pedra?
Compromissos e horas marcadas?
Competição, não pela sobrevivência,
Mas pelo artigo de luxo?
O homem sangra,
Sente fome, tem medo e frio;
Já não sorri.
E têm uns melhores que os outros?
O homem tem excretas,
Não pensa no que diz,
Magoa por ego ferido,
Louva deuses distantes,
E não olha para o ser ao seu lado.
Se preocupa com o futuro
E não faz nada no presente.
Vende uma imagem
Composta de máscaras.
Sente emoções ficcionais,
Copiadas do último filme de ação.
Quando sente...
Se sujeita por fraqueza,
E não por compreensão.
Amontoa-se em cidades.
Cria padrões e regras
-nega individualidades-
Comete violências inexplicáveis.
Pensa!
E como pensa:
Em como perder quilos;
Em como se esconder da responsabilidade;
Em como passar a vida da maneira mais passiva possível.
Eu sou vício e choro!
Clareza e loucura!
Eu sinto o mundo saindo pelos ralos
Fétido e pútrido,
E sei que não sou a rolha que O impede de esvair por inteiro.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O filho que eu quero ter

O filho que eu quero ter
Vinicius de Moraes no livro A Arca de Noé

É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim chorando acalentar
O filho que eu quero ter.

Dorme, meu pequenininho
Dorme, que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem.

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim.

Dorme, menino levado
Dorme, que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem.

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai sem cuidado
Dorme, que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Poemas aos homens do nosso tempo

Poemas aos homens do nosso tempo
Hilda Hilst em trecho de Poemas aos homens do nosso tempo

III

homenagem à Natalia Gorbanievskaya


Sobre o vosso jazigo
- Homem político -
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens.
Sobre os vossos filhos
- Homem político -
A desventura
do vosso nome.
E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre as vossas vidas
- Homem político -
Inexoravelmente, nossa morte.


V

homenagem a Alexei Sakarov

de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima
LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO. POLVO.
UM DIA.
O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.
E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Infância vivida, lugar especial

Infância vivida, lugar especial
Belizario, inverno 10.

Laranjal!
Tuas ruas de barro...tuas ruas de vagalume...
Que não existem mais...asfalto!
Teu cheiro a mato...tuas casas de folhas de bananeira...tuas figueiras dos bugios...
Que não existem mais...desmato!
Tuas valetas que mais eram córregos de onde vertiam a água, o suco da floresta, as pescarias de girino...
Que não existem mais...esgoto!
Bicicletas no ombro...travessia pelo pântano até a barra...fritada de jundiá, mandinho, pintado...
Que não existem mais...carro!
Noitadas de poesia, beijos e amor embaixo da lua, no berço da lagoa, cheiro de areia...
Que não existem mais...baladas!
Ainda verto paixões por esse lugar.
Ainda sinto o gosto da ameixa amarela roubada aos gritos desesperados do cusco...
Ainda sinto o vento na cara, as pernas bambas na frenética bicicleta, depois de um beijo roubado...
Ainda comemoro os gols, mesmo os de canela, no campinho, caixa d’água, eucaliptos, maracalombo,...
Laranjal, das histórias de fantasmas...
Da cunhã, da pretinha, do rex, do fico, da polenta...do cheiro a cachorro!
Que ainda guarda o meu maior legado.
Infância vivida...
O canto dos pássaros...
Gosto de liberdade...
Mãe e Pai!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Angelina

Angelina
Lila Ripoll no livro Primeiro de maio

A massa resiste,
rebelde,
indomável,
erguendo muralhas,
de peitos e braços,
às frias espadas,
aos altos fuzis.

A rua tranquila,
tão cheia de cantos,
encheu-se de cinza,
de sangue e de pó.

O povo resiste
e os tiros aumentam.
Protestam as vozes
num vivo clamor.

Respondem espadas,
fuzis apontando,
fuzis metralhando.

A massa recua
retorna e avança
com novo vigor.

Na rua estendidos
Euclides e Honório,
e mais Osvaldino,
fecharam seus olhos,
seus lábios calaram.

As vagas aumentam
de ódio incontido.
E há novos protestos
do povo ferido.

Alguém arrebata
das mãos de Angelina
a verde Bandeira
que ondula no ar.

Os tiros procuram
o peito de Recchia.
E os tiros ficaram
no peito a morar.

Os olhos dos homens
refletem angústia,
revelam paixão.

Ferido está Recchia,
e há sangue no chão.

Ninguém junto ao leme,
ninguém no comando.
Vermelhas papoulas
matizam o chão.

O rosto em tormento,
cabelos ao vento,
retorna Angelina,
mais alta e mais fina.

"A nossa Bandeira
nas mãos da polícia?"

E à luta regressa
com febre no olhar.

Os braços erguidos,
subiam, caíam,
em meio a outros braços,
o mastro a arrastar.

e às mãos vitoriosas,
num breve momento,
retorna a Bandeira
batida ao vento.

Um frio estampido
correu pelo espaço,
na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,
vacila Angelina,
e a flor de seu corpo
na rua tombou.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sob um céu de blues

Sob um céu de blues
Piqui


É chegada a hora. A hora exata sempre chega. Quando menos esperamos por ela, eis que surge sua magricela sombra pelo ar. Um envelope atravessou a porta. A porta, oca e sem cor, jamais saberia o conteúdo daquela missiva. O segredo se consumava naquele momento. Correntes de ar frio seguiam espalhando-se pelo corredor. As paredes umedecidas escorriam suor pela labuta de existir. Sempre paredes. Sem cor e sem cheiro definido, mas restavam ainda marcas obscenas da vida cotidiana. A mão trêmula apanhou aquela forma insegura levando seus olhos aos quatros cantos do envelope. O destinatário não emitia dúvida alguma que aquilo a pertencia. Selo com a imagem de ... Por um instante a memória apagou-se por inteiro. Vagando horas por infinitos labirintos lembrou-se da mãe. Mas a imagem se desfez num instante. Voltou a si. Pouco a pouco abriu o envelope por inteiro. Naquele momento os olhos pareciam vagar como um velho barquinho de papel sobre a água. Seguiam as palavras em movimento de ondas. Lutava impunemente com a fúria daquela tempestade de significados. Apertou em seu rosto o papel envelhecido. Jamais imaginaria que aquilo era verossímil. Não!Não! Não pode ser. Um suor caiu-lhe pela face. .. deitado no divã via tudo girar. No divã as coisas... metamorfose. Acordou, olhou para o lado e sorriu. Um papel envelhecido, com belas letras desenhadas. Ergueu-se num átimo. Levou a carta a boca e a beijou. O amor restava-lhe ainda, naquelas letras de marfim.

sábado, 7 de agosto de 2010

Comunismo de Pés

Comunismo de Pés
Lobo da Costa no livro Lucubrações

Eram dois estudantes, habitavam
Ambos na mesma casa e por desgraça
Tinham p'ra uso mútuo um par de botas...
E o mais não é chalaça
Passavam por janotas!

Foi no tempo da onça e quem não sabe
Que a jaula predileta desse bicho -
È quase sempre a casa do estudante,
Por gosto...ou por capricho!
- Mas, passemos adiante:

Muito se amavam eles; - é verdade
Que pouco andavam juntos; se passeava
O mais velho, - é bem fácil de prever
Que o mais moço ficava,
Pois tinha o que fazer.

Se por acaso viam-se obrigados
A frequentar a aula ao mesmo jeito,
Um sentia no pé esquerdo calos...
O outro no direito,
Que era lástima olhá-los!

Morre por fim Pílades de casa...
O mais velho...o mais pobre! Orestes chora,
E pede à terra em lágrimas banhado -
Que seja leve agora,
A quem pouco pisou com seu calçado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Piedade

A Piedade
Roberto Piva no livro Paranóia

Eu urrava nos poliedros da justiça meu momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados a noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universaliaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Antítese

Antítese
Castro Alves no livro Os Escravos

O seu prêmio? - O desespero e uma carta de alforria quando tem gastas as forças e não pode mais ganhar a subsistência. Maciel Pinheiro

Cintila a festa nas salas!
Das serpentinas de prata
Jorram luzes em cascata
Sobre sedas e rubis.
Soa a orquestra... Como silfos
Na valsa os pares perpassam,
Sobre as flores, que se enlaçam
Dos tapetes nos coxins.

Entanto a névoa da noite
No átrio, na vasta rua,
Como um sudário flutua
Nos ombros da solidão.
E as ventanias errantes,
Pelos ermos perpassando,
Vão se ocultar soluçando
Nos antros da escuridão.

Tudo é deserto... somente
Em meio à praça se agita
Dúbia forma que palpita,
Se estorce em rouco estertor.
- Espécie de cão sem dono
DEsprezado na agonia,
Larva da noite sombria,
Mescla de trevas e horror.

É ele o escravo maldito,
O velho desamparado,
Bem como o cedro lascado,
Bem como o cedro no chão.
Tem por leito de agonias
As lajes do pavimento,
E como único lamento
Passa rugindo o tufão.

Chorai, orvalhos da noite,
Soluçai, ventos errantes.
Astros da noite brilhantes
Sede os círios do infeliz!...
Que o cadáver insepulto,
Nas praças abandonado,
É um verbo de luz, um brado
Que a liberdade prediz.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O ser é um mar sem fronteiras e sem medidas

O ser é um mar sem fronteiras e sem medidas
Khalil Gibran em trecho do livro O profeta

Não digais, "Encontrei a verdade", mas sim, "Encontrei uma verdade".
Não digais, "Encontrei o caminho da alma", mas sim "Encontrei a alma andando em meu caminho".
Pois a alma anda em todos os caminhos.
A alma não anda sobre uma linha, nem cresce como um junco.
A alma desdobra a si mesma, como um lótus de infinitas pétalas.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

EStou cansada de ser

Estou cansada de ser
Giordana Porrat

Estou cansada de ser
Só mais um número,
Dentro dos registros:
Demográficos,
Fotográficos,
Pornográficos.
Estou cansada de NÃO ser,
Pois entre o ser ou não ser
Escolheram por mim...
E não fui!
Assim como não é ou será.
O mundo rodou,
E cresceu.
Tudo é cosmopolita
Dentro das negociações econômicas
E na política dos vencedores
- que não comem mais as batatas –
As batatas agora são lixo tóxico,
Assim como as flores transgênicas
E os homens mercenários.
Cresça,
Coma,
Case.
Encha o mundo
De mais perdedores.
Encha o mundo
De consumidores.
Fale,
Veja,
Transe.
Seja mais um cego no tiroteio;
Seja mais uma voz surda;
Seja mais um objeto sexual
-pelo menos você terá função.
Destrua,
Corrompa,
Vegete.
Ninguém se importa com o que pensa
Só há um pensamento que domina.
Assista Tv,
Tome Coca,
Aceite a vida como ela é:
Como eles te deram.
Honre a memória,
Respeite a ordem
Imposta pela minoria
On-impotente e com síndrome de Deus.