Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Eu

Eu
Maiakóvski no livro Poemas

Nas calçadas pisadas
de minha alma
passadas de loucos estalam
calcâneo de frases ásperas
Onde
forcas
esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
pescoço de torres
oblíquas

soluçando eu avanço por vias que se encruzilham
à vista
de cruci-
fixos

polícias

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Poema 20

Poema 20
Pablo Neruda no livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mormaço de Primavera

Mormaço de Primavera
Thiago de Mello no livro Poesia comprometida com a minha e a tua vida

Entre chuva e chuva, o mormaço.
A luz que nos entrega o dia
não dá ainda para distinguir
o sujo do encardido,
o fugaz, do provisório.
A própria luz é molhada.
De tão baça, não me deixa
sequer enxergar o fundo
dos olhos claros da mulher amada.

Mas é com esta luz mesmo,
difusa e dolorida,
que é preciso encontrar as cores certas
para poder trabalhar a Primavera.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Comportamento Geral

Comportamento Geral
Gonzaguinha


Você deve notar que não tem mais tutu
e dizer que não está preocupado.
Você deve lutar pela xepa da feira
e dizer que está recompensado.
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado.
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado.

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal.
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado".
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado.
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado.
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado.

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você merece, você merece.
Tudo vai bem, tudo legal.

E um Fuscão no juízo final.
Você merece, você merece.

E diploma de bem comportado.
Você merece, você merece.

Esqueça que está desempregado.
Você merece, você merece.

Tudo vai bem, tudo legal.


http://www.youtube.com/watch?v=LcngqkLujMA

sábado, 18 de setembro de 2010

Janela sobre o corpo

Janela sobre o corpo
Eduardo Galeano no livro As palavras andantes

A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Meu irmão

Meu irmão
Belizario, inverno 10.

Cresci do lado de um alemão.
Que foi desdentado, que foi dentuço...
hoje é carequinha, antes foi cabeludo...
andávamos sempre juntos...meu irmão.

Sempre nos cutucávamos, fazia parte...
Ora me subornava pedindo doces pra não entregar o boletim...o meu sempre péssimo.
Ora eu corria pra entregar suas peripécias...dedo duro gritava ele com cara de brabo.

Ele era goleiro, eu atacante...
depois foi atacante e eu goleiro...
raramente jogávamos no mesmo time.
O legal era mantermos a rivalidade.
Tranquilamente explicável...
um capricórnio, outro sagitário.

Mas ai de quem me ofendesse ou me cutucasse
subia-lhe as têmporas, ficava vermelho...
e não deixava que ninguém me tocasse!

Sempre fiquei todo bobo nessas horas, confesso...
quem não quer ser protegido...tornar-se intocável!
Meu irmão me fez assim...inabalável.
É, eu sei....acho que no fundo fui mimado.

Desde pequeno observei suas coisas...seus gostos...suas práticas...
achava aquilo tudo muito interessante....debochava dele, algumas vezes achava excêntrico pacas!
Como aquele montão de moedas juntadas e classificadas...
Ficava pensando qual era meu papel de mais velho...se realmente eu me sentia assim...
Hoje acho que não...nutri a vida inteira admiração e resignação com as opiniões dele.
Na verdade, sinto que ele também me ouviu muitas vezes.

Curto muito relembrar os jogos que fomos juntos na Baixada...
as pescarias...
as peladas...
as caminhadas com chimarrão...
as festas e as ressacas.

Hoje distantes, não nos cuidamos mais tanto...
Parei de jogar bola...parei de pescar.
Mas continuamos a conversar sobre a vida...as aulas...a tomar mate...
Sobre como anda o mundo...sobre como é difícil ser adulto.

Continuo a admirá-lo muito!

Um professor aguerrido trabalhador...
Dono de sua própria vida,
e que aqui dentro o mantenho
com muito companheirismo e amor.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Renasce a ode de Lorca em Canguçu

Renasce a ode de Lorca em Canguçu
Lucio Xavier

Reencarnado;
aquele belo rosto,
de menina:
fechada,
imaculada,
irredutível solta
pelos campos de Lorca.
A vida corre
e lhe oferece
A aflição urbana.
Belas rudes mãos
lhe puxam de um limite à tona.
Indifere seu sentido,
na pura,
simples,
feliz
e suficiente lide de azeitona!
No futuro repetido,
o mesmo rosto
da Espanha primordial,
nasce enraizado
Numa face de cristal;
efêmera vontade de ficar
medo de perder,
ânsia de ganhar um mundo
que lhe agride,
lhe proíbe!
A mão de agora
não mais puxa.
Quer lhe plantar!
O belo rosto se redime,
dá sentido,
ouve,
sonha
e reinventa
os passantes de Granada para Sevilha.
Prova para história
a independência de um ser rural,
por mãos que lhe percam,
achem
e reencontrem.
Seu sentido, agora,
esconde a raiz na terra arada!
Urbana?
Por lei.
Passa nítida
e se compõe,
permitindo para si
o campo na alma,
contra toda ilusão
que a cidade lhe semeia.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O Apanhador de Desperdícios

O Apanhador de Desperdícios
Manoel de Barros no livro Memórias Inventadas - A Infância

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Tempo e o Vento

O Tempo e o Vento
Mario Quintana no livro Apontamentos de História Sobrenatural

Para Érico Veríssimo, em comemoração aos seus 65 anos


Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo

Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo

E o vento!

O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com teus cabelos...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Salomé

Salomé
Mário de Sá Carneiro na coletânea Livro das Cortesãs

Insônia roxa. A luz a virgular-se em medo,
luz morta de luar, mais alma do que lua...
Ela dança, ela range. A carne, álcool de lua,
alastra-se pra mim num espasmo de segredo...

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio...Alabastro!...A minha alma parou...
E o seu corpo resvala a projetar estátuas...

Ela chama-me em íris. Nimba-se a perder-me,
golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais...A doida quer morrer-me:

mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto e vou arder-me
na boca imperial que humanizou um santo...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Da Alegria e da Tristeza

Da Alegria e da Tristeza
Khalil Gibran em trecho do livro O Profeta

Então, uma mulher disse: Fala-nos da Alegria e da Tristeza.
E ele respondeu:
Vossa alegria é a tristeza desmascarada.
E o mesmo poço de onde surge vosso riso esteve muitas vezes cheio das vossas lágrimas.
E como pode ser diferente?
Quanto mais profundamente a tristeza escava o vosso ser, mais alegria ele pode conter.
Não é o cálice que leva o vosso vinho o mesmo cálice que foi queimado no forno do oleiro?
Não é a lira que conforta o vosso espírito a mesma madeira que foi esculpida com facas?
Quando estiverdes felizes, olhai no fundo dos vossos corações e vereis que, na verdade, estais chorando pelo que foi prazer.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Virgem

Virgem
Thiago de Mello no livro A canção do amor armado

Que me perdoem os varões
nascidos em Virgem.
Com a determinação e o espírito crítico
de que são capazes,
que tratem de viver e obrar
do melhor modo possível
para esquivar-se às maléficas
(estou avisando)
influências de Mercúrio,
às quais estarão sujeitos
em seguidos quadrantes do tempo.

Sucede que não posso lhes dar mais de mim,
tanto são os cuidados
que me reclama a fortuna
das delicadas mulheres de Virgem,
para quem os dias que virão
serão de memoráveis sucessos.
De um modo geral, estarão na crista
da onda mais ensolarada.
Mas é preciso que te ajudes, companheira.
Não te garanto que tudo sejam flores.
Ultimamente abandonaste tua estrela,
que anda navegando solitária
pelos ermos do teu peito.
A conjunção de Mercúrio e Marte,
com a Lua de permeio,
põe o teu amor à beira do perigo.
Sobe com ele a montanha mais verde
e abriga tua esperança
no ventre de uma palmeira.
Sei que gostas dos mecanismos deslumbrantes,
preferes a rigidez dos esquemas,
que aliás não são teus,
e o equilíbrio da conduta humana.
Mas te asseguro que às vésperas
do florescer dos trigais,
aprenderás a desfazer a ordem do trânsito
e a subverter a cronologia dos relógios.
Porque no meio da primavera
inventarás alta noite
uma rosa estrelada
para tua pessoa mais amada.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Paranóia em Astrakan

Paranóia em Astrakan
Roberto Piva no livro Paranóia

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela

onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos
arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Persistência do Eu Romântico

Persistência do Eu Romântico
Waly Salomão no livro Algaravias

O real é oco, coxo, capenga.
O real chapa.
A imaginação voa.

Escrevi até a exaustão
no pergaminho d'água do sono.
Nessas linhas esvaídas no vórtice da vigília,
ao mesmo tempo em que inebriado ouvia
com o mais apurado ouvido absoluto,
parece que eu transcrevia
com a exata minúcia de geômetra-matemático,
em uma vivida e mutável clave,
as notas do sempre mesmo rouxinol.
Sumida a cor do perfume das rosas
de Hafiz de Chiraz
sem deixar pista de armazém,
aparelho clandestino,
ponta de estoque, local de resgate,
arquivo ou fichário
do fantasmático país do olvido
dessa amalgamada região dos tropos,
acordei
(oh! calígrafo dopado!)
e
nada restou impresso.

Reduzido a esqueleto de éter,
Poeta mente demais...
Uma borboleta bate as asas
dentro do meu peito
e provoca furacões
lá na Cochinchina. OU vice-versa.

O real é oco, coxo, capenga.
O real chapa.
A imaginação voa.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Balada do Festival

Balada do Festival
Hilda Hilst em trecho do livro Balada do Festival


IV
a Vinícius de Moraes

Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
(Porque fui mais amante que amiga)
Sem dúvida dirão coisas que não fui.
Ou então com grande generosidade:
Não era mau poeta a pequena Hilda.

Terei rosas no corpo, nas mãos, nos pés.
Sei disso porque fiz um pedido piegas
à minha mãe: “Quero ter rosas comigo
na hora da minha morte.”

E haverá rosas.
São todos tão delicados
tão delicados...

Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
E um deles dirá um poema sinistro
a jeito de balada em tom menor...

Tem tanto medo da terra
a moça que hoje se enterra.
Fez poema, fez soneto
muito mais meu do que dela.
Lá, lá, ri, lá, lá, lá, lá.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cabelos

Cabelos
Cruz e Souza no livro Faróis

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluído vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos...

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia...

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida noite da melancolia!