Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um Lobo em minhas veias

Um Lobo em minhas veias
Belizario, inverno 09.

Aos que tombaram.
Aos descamisados.
Aos que partiram, que foram retirados.

Aos competentes de coisa nenhuma, resta a glória da tirania.
Que embalsama seus bolsos, sua mesquinhez.
Daqueles que não deliram.
Daqueles que não enxergam o porvir.
Que não perseguem a vida.
O sonho do amanhecer.

Anseios

Anseios
Florbela Espanca no livro A Mensageira das Violetas

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha que cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não estendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

V, de viagem

V, de viagem
Paulo Leminski no livro Distraídos venceremos

Viajar me deixa
a alma rasa,
perto de tudo,
longe de casa.

Em casa, estava a vida,
aquela que, na viagem,
viajava, bela
e adormecida.

A vida viajava
mas não viajava eu,
que toda viagem
é feita só de partida.

domingo, 21 de novembro de 2010

Tem gente...

Sem título
Viviane Mosé no livro Pensamento chão

Tem gente que tem o costume de vazar pelos cantos.
No começo vaza calada. Aos poucos. Aos pingos.
Mas se pega gosto principia o derrame.
Escorre quando fala. Escorre quando anda.
Não tem mais braço nem cabelo que sgeure.
Parece que vicia em ficar transbordada.

Mas tem gente que quando transborda é pra dentro.
E corre o risco de ficar represada. E represa você sabe.
Se aumenta muito arrebenta.

Mas se a pessoa ensaia um jeito de derramar pra fora.
Aí vai fazendo leito. Vai abrindo seu caminho na terra.
E a terra parece que se abre pra ela passar. Às vezes não.

sábado, 20 de novembro de 2010

Vinte de novembro

Vinte de novembro
Oliveira Silveira no livro Roteiro dos Tantãs

Dia vinte de novembro
entre as palmeiras do Palmar,
último grito de guerra no ar.

Dia vinte de novembro,
entre as montanhas do Palmar,
os duros músculos do herói
guiando seu braço ágil
na luta desigual.

Dia vinte de novembro,
entre os riachos do Palmar,
o sangue-húmus de Zumbi
derramando-se ao chão
para fertilizar.

Dia vinte de novembro,
entre mensagens
do Palmar,
tambores
de orgulho
e brio
conclamando
a lutar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

El poeta exige a su amor que le escriba

El poeta exige a su amor que le escriba
Frederico García Lorca no livro Poetas Españoles Contemporáneos Breve Antologia

Amor de mis entrañas, viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita
y pienso con la flor que se marchita
que, si vivo sin mí, quiero perderte.

El aire es imortal. La piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.

Pero yo te sufri, rasgué mis venas,
tigre y paloma sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.

Llena, pues, de palabras mi locura,
o déjame vivir en mi serena,
noche del alma para siempre obscura.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A lição

A lição
Belizario, primavera 10.

Um jovem negro avô...
Uma jovem mãe...filho no colo...
O Sopapo...

A pequena mão tocou a pele do tambor,
o choro cessou.
O avô ritmava...
os pequenos olhos cresceram...cara assustada!
Eram as batidas de seu coração.

Jamais esqueceria...
Daquela tarde de calor...
Do tambor...
Do avô...
Do peito pulsando...do coração.

A lição tinha sido ensinada:
A vida é como a pele do tambor,
com fogo deve ser afinada e ritmada...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Sobre a amabilidade

Sobre a amabilidade
Bertolt Brecht no livro Histórias do senhor Keuner

O senhor K. estimava muito a amabilidade. Ele disse: "Conversar com alguém apenas para parecer amável, não apreciar alguém por suas possibilidades, ser amável com alguém só quando ele também é amável, considerar alguém friamente quando é caloroso e calorosamente quando é frio, isto não é amável".

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O poeta da roça

O poeta da roça
Patativa do Assaré no livro Inspiração Nordestina

Sou fio das mata, cantô da mão grossa,
Trabaio na roça, de inverno e de estio.
A minha chupana é tapada de barro,
Só fumo cigarro de páia de mio.

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestré, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola,
Cantando, pachola, à percura de amô.

Não tenho sabença, pois nunca estudei,
Apenas eu sei o meu nome assiná.
Meu pai, coitadinho! Vivia sem cobre,
E o fio do pobre não pode estudá.

Meu verso rastêro, singelo e sem graça,
Não entra na praça, no rico salão,
Meu verso só entra no campo e na roça,
Nas pobre paioça, da serra ao sertão.

Só canto o buliço da vida apertada,
Da liga pesada, das roça e dos eito
E às vêz, rescordando a feliz mocidade,
Canto uma sôdade que mora em meu peito.

Eu canto o cabôco com suas caçada,
Nas noite assombrada que tudo apavora,
Por dentro da mata, com tanta corage
Topando as visage chamada caipora.

Eu canto o vaquêro vestido de côro,
Brigando com o tôro no mato fechado,
Que pega na ponta do brabo novio,
Ganhando lugio do dono do gado.

Eu canto o mendigo de sujo farrapo,
Coberto de trapo e mochila na mão,
Que chora pedindo o socorro dos home,
E tomba de fome, sem casa e sem pão,

E assim, sem cobiça dos cofre luzente,
Eu vivo contente e feliz com a sorte,
Morando no campo, sem vê a cidade,
Cantando as verdade das coisa do Norte.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Alvorada

Alvorada
Rodolpho Xavier

Salve Alvorada Salve, aurora resplendente
Dum porvir cheio de glórias! Bússola da etíope gente
Ao rumo doutras vitórias! Passado que nunca mente,
Velhas lides, transitórias, Hoje, és arca do presente
Que arquivas nossas memórias. A “Campanha de Educação”
Que encetas, desassombrada,
Para não ser desvirtuada Deve vir do coração
Da raça, que escravizada, Foi pelo seu próprio irmão...

domingo, 7 de novembro de 2010

A aprendizagem amarga

A aprendizagem amarga
Thiago de Mello no livro Faz escuro mas eu canto

Chega um dia em que o dia se termina
antes que a noite caia inteiramente.
Chega um dia em que a mão, já no caminho,
de repente se esquece do seu gesto.
Chega um dia em que a lenha já não chega
para acender o fogo da lareira.
Chega um dia em que o amor, que era infinito,
de repente se acaba, de repente.

Força é saber amar doce e constante
com o encanto de rosa alta na haste,
para que o amor ferido não se acabe
na eternidade amarga de um instante.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Despejo na Favela

Despejo na Favela
Adoniran Barbosa

Quando o oficial de justiça chegou lá na favela.
E contra seu desejo, entregou pra seu Narciso um aviso,
pra uma ordem de despejo.
Assinada seu doutor.
Assim dizia a petição: dentro de dez dias quero a favela vazia e os
barracos todos no chão.
É uma ordem superior.
Ô meu senhor, é uma ordem superior.
Não tem nada não seu doutor, não tem nada não.
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão.
Não tem nada não seu doutor, vou sair daqui,
pra não ouvir o ronco do trator.
Pra mim não tem problema,
em qualquer canto me arrumo, de qualquer jeito me ajeito.
Depois o que eu tenho é tão pouco,
minha mudança é tão pequena, que cabe no bolso de trás.
Mas essa gente ai hein como é que faz?
Mas essa gente ai hein como é que faz?

http://www.youtube.com/watch?v=4jAPmGJB5Qk&feature=related

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A flor e a náusea

A flor e a náusea
Carlos Drummond de Andrade no livro Rosa do Povo

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Canção

Canção
Allen Ginzberg no livro Uivo

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano -

sai para fora do coração
ardendo de pureza -
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado

- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobre
feliz até o olho -

sim, sim,
é isso o que
eu qeuria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.