Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Oxalá vem chegando

Oxalá vem chegando
Belizario, primavera 11.

Quem é esse no espelho?!
Que não me encara nos olhos...
Com um sorriso amarelado,
de canto de boca,
debochado...?!

É o tempo que vai,
desenfreado,
irônico com a vida,
e agora sou eu que os olhos abaixo.

Quem me dera meter a mão,
atravessar o espelho,
segurá-lo pelo pulso...!!
Trinta vezes tentei...

Shhh! Pediu-me silêncio.
O sol todo dia se levanta,
Oxalá vem chegando,
para confortar os de bem.

sábado, 3 de dezembro de 2011

XXIX

XXIX
Hilda Hilst no livro Cantares de Perda e Predileção

Faz de mim tua presa:
Raiz para o teu ódio.

Amor para o meu navegar
E abrandado cessa
De lançar tua rede
Tua armadilha.

Faz de mim tua sombra
E injuria, sangra
Essa que te descansa
Na tua soberba escalada ao meio-dia.
Golpeia
Para amansar tua fina presa.

Faz de mim tua boca
E cobre de saliva
Tua cria de carne e solidão.
E abrandado cessa
Teu exercício de virtude e treva.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

XXVIII

XXVIII
Hilda Hilst no livro Cantares de Perda e Predileção

Ronda tua crueldade.
Esconde, avança.

Até que me descubras
Fissura rigorosa
Na tua garra
Ajustado tensor
Para tua lança.

Ronda meu abandono
Persegue
Trança meu desamparo
Sono e tua iniqüidade.
Ritualiza a matança
De quem só te deu vida.

E me deixa viver
Nessa que morre.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Composição

Composição
Carlos Drummond de Andrade no livro José Fazendeiro do Ar Novos Poemas

E é sempre a chuva
nos desertos sem guarda-chuva,
algo que escorre, peixe dúbio,
e a cicatriz, percebe-se, no muro nu.

E são dissolvidos fragmentos de estuque
e o pó das demolições de tudo
que atravanca o disforme país futuro.
Débil, nas ramas, o socorro do imbu.
Pinga, no desavorado campo nu.

Onde vivemos é água. O sono, úmido,
em urnas desoladas. Já se entornam,
fungidas, na corrente, as coisas caras
que eram pura delícia, hoje carvão.

O mais é barro, sem esperança de escultura.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sagitário

Sagitário
Vinicius de Moraes no livro A mulher e o signo

As mulheres sagitarianas
São abnegadas e bacanas
Mas não lhe venham com grossuras
Nem injustiças ou censuras
Porque ela custa mas se esquenta
E pode ser muito violenta.
Aí, o homem que se cuide...
- Também, quem gosta de censura!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Foi numa lua cheia de novembro...

Foi numa lua cheia de novembro...
Belizario, primavera 11.

Foi numa lua cheia de novembro...
Numa madrugada de primavera,
Como nas tantas em que o pai gostava de brincar...
Toda peludinha,
Ditado antigo diz que guria peluda é braba...
Quebrou as regras,
Nasceu indignada!
Com pêlos até quase nos olhinhos,
Testa franzidinha de gente que pensa,
Logo abriu aquele bocão imenso... sob sua cor morena...
Preguiçosa que só ela...
Quis o destino escorpião.
A mulher de vermelho no corredor,
feito um anjo naquele prédio branco e frio,
cheia de calor, sentenciou:
Deste signo e com esta lua cheia,
Vai ser mulher de fibra,
Personalidade forte,
Iluminada...
Pela lua cheia,
No colo do pai...
Que já a vira em seus sonhos...
E tantas e tantas vezes a chamou...
E hoje, a semeia em seus braços...
Para as utopias...
e para a maior delas:
o amor.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

É provação

É provação
Belizario, primavera 11.

Esse toc-toc na porta...
É minha filha que vem.
Arrastando a primavera...
Que linda florzinha...
Jujubim...
Brotando ternura no chão.

Carrega flores para o pai.
Corpo novo, alma velha...
Quem dera se fosse de sabedoria.
Na bela carcaça urge a penitência...
Dissimulada viola que só desafina,
É provação!

sábado, 22 de outubro de 2011

Olhos de tango

Olhos de tango
Belizario, primavera 11.

Lá estava ela diante do espelho. Prendendo os cabelos, os óculos na penteadeira... aqueles olhos puxados...boêmios. Um pouco de perfume, discreto batom. Era terça-feira, noite de boteco... já havia sido nas sextas, nos sábados, mas agora era terça. Pelo menos os amigos, ainda pertos e vivos, frequentavam o local. De vez em vez aparecia um grupo de jovens, daqueles despertos, espertos. Buscando reminiscências de um passado para ela tão longínquo... lembrava-se dos tempos de diva... como gostavam de dizer no Brasil. Não havia homem que com torcer de pescoço deixasse de brindar sua sensualidade, seus olhos cinzentos de tango. Una Argentina de las calles con colores vivas...donde se lloravan los perdidos amores...donde se cantó la libertad! Tocava a campainha, era justamente ela, sua amiga Libertad, antiga bailarina de cabaré, manicure de um salão pequeno ao pé da ladeira esprimido entre prédios. Não há quem pague o cheiro de noite... sentir o pé no chão! A saudação na porta, o primeiro acorde do violão... levantava ela... de olhos fechados, o primeiro suspiro do bandonion, o famoso bordão: “Por una cabeza...”.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Integração nas prateleiras

Integração nas prateleiras
Belizario, primavera, 11.

Na antiga Guarda da Lagoa,
Mas falo nos atuais dias,
Comportamento corriqueiro
é sacanear quem vem de fora...
apesar de tudo, com cantos de viva, viva!..
entoa certo povo,
na Câmara, na rádio, na praça,
salve esta nova raça,
dinherus turistas!

Sem falar na escrita dos jornais...
Onde a cidade brinda a saída,
O fugir da estagnada economia.
Explorando o passado “glorioso”,
e a zona franca...salve a classe média em euforia!

É uma espécie de sentimento geral,
Que esperto é o que te passa a perna.
Pede mais quando o valor é pouco,
Vende como bom o que não mais presta!

O comportamento, diriam alguns,
É generalizado...
Vem também com quem de longe chega...
Desesperado pelo desconto,
No atropelar dos freeshops e no bater das tarjetas...

Tudo bem...dou razão para estas bocas,
Que são livres da xenofobia provincialesca.
Mas ainda quero ver em alguma cidade,
O manancial que jaz neste fortim,
deste tanto de gente picareta...

Ah, que saudade dos tempos que não vivi,
Dos outros tempos desta fronteira.
Onde o rio era um passo fluído,
E a integração não era só nas prateleiras...

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Inesperados ventos, brados anarquistas

Inesperados ventos, brados anarquistas
Belizario, primavera 11.

Foi na boca de um menino que me reencontrei.
Quando não respeitou a convenção,
e peitou o ódio tirano
do que se regozija
e se declara libertador.

Passo a frente não sabia mais dar,
rodopiava em torno do próprio rabo,
tal qual cusco amarrado, focinho reprimido,
com grades ao redor,
sem na rua um passo dar.

Blindado pela indiferença,
pela falta de coragem,
que o sangue juvenil,
pelo menos em alguns e saúdo os que restam,
não aceita, não compensa,
ainda insistem em bradar.

São tempos de água parada...
de acomodação... e convenção com os alpinistas,
escalando e disputando os cargos mais ínfimos,
famintos de poder,
falo principalmente das gerações mais novas...
mas também das mais antigas.

Suerte e ainda bem,
que inesperados ventos,
feito fina brisa ou intenso tufão,
ainda existem na terra,
levantando poeira do chão.

Trazem antigos brados anarquistas,
dos mais longes cantos do mundo...
e a juventude ainda resiste! E se multiplica!

Tumultua as águas,
não aceita o fatalismo, a apatia,
dos revolucionários de boca,
e dessas bocas urge ainda
o eterno protesto, que se atualiza, a maior reivindicação:
contra a fome, o estado fascista, a burguesia e a opressão.

sábado, 1 de outubro de 2011

O negro fala sobre rios

O negro fala sobre rios
Langston Hughes
Tradução: Carlos Machado


Conheço rios:
Conheço rios tão antigos quanto o mundo e mais
velhos que o fluxo de sangue humano
nas veias humanas.

Minha alma se tornou profunda como os rios.

Banhei-me no Eufrates quando eram jovens as
auroras.
Construí minha cabana junto ao Congo e ele
me cantou canções de ninar.

Olhei para o Nilo e acima dele levantei as
pirâmides.
Ouvi o canto do Mississippi quando Abe Lincoln
desceu até New Orleans e vi seu seio
lamacento tornar-se ouro, ao pôr-do-sol.

Conheço rios:
Antigos, cinzentos rios.

Minha alma se tornou profunda como os rios.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Poemas de la fugacidad del tiempo

Poemas de la fugacidad del tiempo
Li Taibo no livro Los poetas de la Dinastia Tang (618-907)

I
Ni el agua que transcurre torna a su manantial,
ni la flor desprendida de su tallo
vuelve jamás al árbol que la dejó caer.

II
Aquí fue la morada antigua del rey de Wou;
Libre crece la hierba hoy sobre sus ruinas.
Más lejos, el inmenso palacio de los Tsing,
antaño tan suntuoso y tan temido,
Todo eso fue y no es, todo llega a su término.
Los hechos y los hombres viajan hacia el morir,
Como pasan las aguas del río Azul
a perderse en el mar.

III
Fugitivo relámpago es la vida,
que apenas si da tiempo a sentie su pasar.
Inmutable es la faz de la tierra y del cielo;
Mas cuán súbito el cambio de nuestro propio rostro.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Evasión

Evasión
Tsui Mintong no livro Los poetas de la dinastia Tang (618-907)

Un año, um año más,
y ya otra primavera que se aleja.
En cien años, apenas
si se ve un solo hombre de cien años.
¿Cuántas veces aún nos será dado
embriagarnos en medio de las flores?
Aunque su peso en oro nos costara este vino,
aun así, ¡qué barato sería!

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A maré tá cheia

A maré tá cheia
Belizario, inverno 11.

A maré tá cheia.
O rio sobe o cais, beija a terra...
Delicio-me com a formosura do encontro.
Sou eu entre eles,
me equilibrando sob o vão do que restou sobre a água.
Basta apenas soltar o corpo...
E ele me leva... pra longe...
Quem sabe onde posso chegar.

A maré tá cheia...
Mas navegante, cuidado.
Esse rio quando transborda,
corre pra trás.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Que tipo de mundo é este?

Que tipo de mundo é este?
Bertolt Brecht no livro Poemas e Canções

Que tipo de mundo é este?
As carícias dão em sufocamentos.
Os suspiros semelham gritos de pavor.
Por que voltejam acolá os abutres?
É alguém que vai a um encontro de amor.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Neoplasia

Neoplasia

Belizario, inverno 11.



Em homenagem a amiga Evinha, que morro de saudades...



Naquela mesma hora, todo santo dia, funcionava como um despertador: eram os milicos com seus gritos de guerra, levantando as ruas e os que dormiam...já se acostumara a deitar pelo menos com um dos pés no chão, era mais fácil levantar da cama e fugir do susto. Já estava na hora. A cafeteira de um gole só... já não a compartilhava com ninguém. Teve época que de bom grado dividia até o pão, mas foi-se o tempo do acreditar... foi-se o tempo da entrega pro coletivo... agora era só ela... só assim sustentava seu cotidiano. Rapidamente corria para a esquina, entrava no ônibus. Descia no centro de sua caótica cidade...um puta cheiro a mijo! Pegara nojo do discurso piegas de gente que gosta de velharia...aquilo era uma montoeira de prédios imundos, de gente suja, chão fedido, a urbe devastadora de vidas e que o passado não vale lembrar... queria o ontem enterrado! Mais um ônibus, chegava ao trabalho. Era pragmática, foi-se o tempo em que ao menos o “copia que vai cair na prova” dava certo e os encerrava em sua metodologia...agora não mais...querem sangue no pátio, no intervalo, na frente da escola... querem sexo, se vendem como canalhas, homem e mulher... querem vício... fazia-se de tudo para o sustentar...até para roubar suas coisas, não havia piedade. Intervalo para o almoço... mexe, mexe, mexe... na ponta do talher feio e sujo já surrado, mistura a mesma comida, repetida e fria, que o estômago não quer aceitar... entregou aos cachorros... era hora de mais um tempo justificando as estatísticas e 'enchendo o bolso de dirigente' como gostava de dizer... afinal, alguém que vivia naquele tipo de cotidiano acreditava mesmo que podia desestruturar o sistema?! Ela não mais... era a própria desestrutura... pegava outro ônibus... mais uma turma... e aquela ainda lhe fazia repensar algumas coisas... pelo menos em como diabos iria dizer que todo aquele esforço não valeria por nada (!!)...senhores, muito mais senhoras... acreditavam que a educação iria lhes levar para algum emprego... no fundo sentia impotência... sei lá, pelo menos saberiam ler...escrever... Voltava naquele embalo monótono e conformado que as ruas do bairro faziam o ônibus bailar...cabeça a jogar com o vidro...sabia que o pior chegara. Enfrentar a cama fria...nenhum abraço pra lhe aconchegar.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

II

II

Manoel de Barros no livro O livro das ignorãças



Conheço de palma os dementes de rio.

Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama e de Rogaciano.

Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar no horizonte.

Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas de Corumbá.

Me disse que as coisas que não existem são mais bonitas.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Morre o espírito criativo

Morre o espírito criativo

Belizario, inverno 11.



Esse tempo...

que aqui passa diferente.

Às vezes é lento...

O rio formoso fica monótono...

E as pedras na calçada refletem o sol.

Em que eu lagarteando,

penso nela, nele...

intensamente.



Mas nesta cidade o tempo é mesmo outra coisa.

Me vejo envelhecido...

É tanta gente que se olha...

Te avalia...

Te prende numa mesquinharia de expectativa...

de opinião: olha o que o fulano pensa!

de comportamento: olha o que o fulano faz!

Na primeira vista parecem jovens,

mas com olhar atento,

são velhos peludos que babam...sedentos por hipocrisia.



Seis meses valeram anos...

É o espelho que me mostra torto,

meus olhos fundos,

minha cara mal lavada,

meu corpo que se definha...

Por um povo pequeno e mesquinho,

que saúda os que vem de longe,

pelo comércio seco, aproveitador da classe merda...



E é nesta terra,

que um dia fora de curiosos e aventureiros,

que o tempo passa lento...

Mas passa rápido também...

Fazendo de mim um velho...

Que o espelho entrega:

vai morrendo o espírito criativo,

cansado e triste.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Aprende o que ensina

Aprende o que ensina

Cora Coralina

Trecho da poesia Exaltação de Aninha (O professor)do livro Vintém de cobre.



A estrada da vida é uma reta marcada de encruzilhadas.

Caminhos certos e errados, encontros e desencontros

do começo ao fim.

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Certeza

Certeza
Agostinho Neto no livro Poemas de Angola

Não me peças sorrisos
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas.

Não me exijas glórias
que sou eu o soldado desconhecido
da Humanidade.

As honras
cabem aos generais.

A minha glória
é tudo o que padeço e que sofri
os meus sorrisos
tudo o que chorei.

Nem sorrisos, nem glória.

Apenas um rosto duro
de quem constrói a estrada
por que há de caminhar
pedra após pedra
em terreno difícil.

Um rosto triste
por tanto esforço perdido
- o esforço dos tenazes
que à tarde se cansam

Uma cabeça sem louros
porque não me encontrei
no catálogo
das glórias humanas.

Não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei de passar.

Mas hei de encontrá-los
e segui-los
seja qual for o preço.

Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei
o meu rosto
cercado de ramos de palmeira.

e terei para ti
os sorrisos que me pedes.

sábado, 23 de julho de 2011

Epigrama

Epigrama
Gregório de Mattos e Guerra no livro "Antologia de Humorismo e Sátira"


I

Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Jujuba

Jujuba
Belizario, inverno 11.

É uma guria!
Como sempre desejei.
Antes minha tão desejada maninha,
Agora minha florzinha eterna...
Meu amor é só teu, de ninguém mais não.

Vou te embalar...
Vou te cheirar...
Vou te encher de beijos!

Te levar pra passear,
Sentir o vento na cara,
Pois quero que sintas o cheiro de liberdade desde cedo!
É atrás dele que deverás correr...
Deverás, porque sagitariano como o teu pai,
Não vai parar de te empurrar! De te provocar a viver!

E já me disseram,
parece que tu também Jujuba...
Já pensou, feita de cascos e de sonhos,
Que mundo pequeno este aqui terreno,
Quem nos aguentará, quem vai nos deter?!

Meu amor,
Teu pai como o rio, vai transbordar tantas vezes...
Já te peço perdão.
Mas te prometo uma coisa:
Serei teu eterno bailante,
Parceiro na vida,
Que não te deixará jamais...
Jamais minha filha,
Sozinha no salão.

És meu definitivo amor,
E a ti dedicarei todo o sabor de canção.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Singelos versos de um reencontro

Singelos versos de um reencontro
Belizario, inverno 11.

Brotam-se os escritos, cada dia aumenta a certeza de que vou reencontrar esse homem...

Aos infantes moradores daquele porto!
Que manifestam meus íntimos delírios!
Os ver foi como a gota dágua no deserto,
Agradeço os lindos beijos e abraços,
Nossas falas de coração.

Ver estes companheiros,
É nostalgia,
Mate amargo rebelde nas tardes frias,
Segredos de nossas molhadas vidas,
Encharcadas de paixão!

Trago comigo o companheirismo,
Esta mania de vocês de medir ombros comigo,
Incremento de ternura e poesia,
Dançando libertinamente a Velha Roupa Colorida,
Meus adorados irmãos.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Linha Divisória

Linha divisória
Aldyr Schlee, trechos das epígrafes dos capítulos do livro Linha Divisória.

Há aqui uma linha divisória
entre Jaguarão
e o resto do mundo.

Jaguarão,
fica do lado de cá de uma ponte...

...e o resto do mundo em que vivemos
é todo o sul sem norte.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Erros

Erros
Belizario, outono 11.

Um erro.
Meu erro.
Dois erros.
Todos os erros.
Quem não erra,
se enconde do vento!
Por que não se permite voar?

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Tortura

Tortura
Florbela Espanca no Livro de Mágoas

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! ...
Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento ...
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Pai Grande

Em homenagem aos amigos do antigo Quilombo da Vigário, Quilombo da Baronesa, minhas matrizes...meus "pai grande".

Pai Grande
Milton Nascimento

Meu pai grande
Inda me lembro
E que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai
Hoje vou criar você
Inda tenho muita vida pra viver

Meu pai grande
Quisera eu ter graça pra contar
A história dos guerreiros
Trazidos lá do longe
Trazidos lá do longe
Sem sua paz

De minha saudade vem você contar
De onde eu vim
É bom lembrar
Todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
Podia amar
Podia ver

Todo filho seu
Seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim
Não vou chorar
Já não quero ir mais embora

Minha gente é essa agora
Se estou aqui
Eu trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar


http://www.youtube.com/watch?v=nwhl2xzG1ks&feature=player_embedded

sábado, 4 de junho de 2011

Fantasmas solitários

Andava eu numa praça, caminhando entre as pedras que a calçam...em frente a uma esquina, abri o livro sujo de terra fértil do meu amigo...vira que novo escrito continha, ao terminar de lê-lo, levantei os olhos e baixei-os novamente...mas os levantei rápido de novo em direção a esquina...eu tinha visto meu amigo Belizario, que sorria pra mim, de braços cruzados vagabundo como só ele, encostado na parede sob o sol de pernas cruzadas...atravessei a calçada, corri até a esquina...nenhum sinal daquele homem do rio...mas eu tenho certeza que o vi...e essas poesias que brotam deste livro...

Fantasmas solitários
Belizario, outono 11.

Deve ser o minuano...
que bate solitário...contínuo em assobio...
meus sonetos são só saudade.
Este vento que remói até fantasmas...
Mais de uma vez acordei no madrugar escuro,
e os vi a tirintar de frio...
olham-me por um instante, e viram a cabeça a suspirar...
que terra estranha...onde até os fantasmas são tristes...
ainda lembro...foi ante-ontem...
que vi a última boca a sorrir, o último olhar a brilhar.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

De que valeu?!

Ainda escritos do livro sujo de terra fértil do meu amigo Belizario...começo a desconfiar...dentre os escritos antigos, observo que somam-se alguns novos que eu não havia notado...o caderno parece se multiplicar...

De que valeu?!
Belizario, outono 11.

De que vale o dinheiro...
o tal futuro garantido...
se meu mundo ideal não é matéria...
é viver entre meus amores, meus amigos?!

De que vale isolar-se no fundo do mundo,
onde no primeiro olhar, o charme te convence em belas vistas,
se não é de esplendor e glamour que eu vivo...
é no ritmo acelerado das luzes...na luta cosmopolita?!

Quando esse anzol chamado destino me fisgou,
para não doer demais, decidi ajudar e corri...
de que valeu, se semi-vivo fico a boiar,
esperando meu corpo desistir,
pra despencar até o escuro fundo do rio?!

Numa cidade vazia...
de poucos companheiros a medir ombros comigo,
fico a me perguntar...
de que valeu?! Se ninguém me ouve...
se fico a poetar e cantar sozinho...

De que vale um rio,
se não se pode navegar?!
Pra apagar fogo talvez,
dos sem medidas,
gente como eu,
que gosta de faiscar?!

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A Imagem Perdida

A Imagem Perdida
Mario Quintana no livro Preparativos de viagem

Como essas coisas que não valem nada
E parecem guardadas sem motivo
(Alguma folha seca...uma taça quebrada)
Eu só tenho um valor estimativo...

Nos olhos que me querem é que eu vivo
Esta existência efêmera e encantada...
Um dia hão de extinguir-se e, então, mais nada
Refletirá meu vulto vago e esquivo...

E encerraram-se os olhos das amadas,
O meu nome fugiu de seus lábios vermelhos,
Nunca mais, de um amigo, o caloroso abraço...

E, no entretanto, em meio desta longa viagem,
Muitas vezes parei...e, nos espelhos,
Procuro em vão, minha perdida imagem!

Lágrimas de crocodilo

Do livro sujo de terra fértil...herança de Belizario.

Lágrimas de crocodilo
Belizario, outono 11.

Meu choro não tem mais peso pra ninguém..
são lágrimas de crocodilo...
desdém dos que me tratam como desaparecido,
daquele que não mais convém.

Sugiro uma volta pelo mundo...
olhar atento ao terreno...
ao mágico também...

Nas coisas que acredito,
há espaço pro humano desatino...
os feitos de Olorum são gente como eu.

Imperfeitos meninos,
que colhem o que semeiam...
desafortunados de futuro...
calados pelo destino...
sei bem.

domingo, 15 de maio de 2011

Nasci antes do tempo

Nasci antes do tempo
Cora Coralina no livro Vintém de Cobre

Tudo que criei e defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?

Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
Fulano nasceu antes do tempo,
Guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
Nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou.
Você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.

sábado, 14 de maio de 2011

Não aprendo a lição

Não aprendo a lição
Thiago de Mello no livro Mormaço na floresta

A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.

Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça.
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.

A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Desencantado

Dias desses na beira do São Gonçalo, na caída do dia, uma preta velha se aproximou de mim...abriu minha mão e me entregou um caderno. Reconheci os escritos do Belizario. Disse-me aquela mulher de cabelos brancos: - Mandaram lhe entregar...está sujo de barro porque veio de terra fértil, de beira de rio. Ela encontrou os escritos no mesmo dia em que meu amigo partiu...havia uma folha solta no velho caderno sujo de barro...a descrevo aqui.


Desencantado
Belizario, outono 11.

Cansado dessa gente que insiste,
que aponta o dedo...
que exige de mim sempre um doce gesto.
São os mesmos que me espalham pelo chão...
que com os pés me arrastam...
como vidro preso embaixo do sapato...que grita e ringe...
criam nojo e me vendem feito fruta podre,
a celebrar o desencantado.
Lembram e relembram meus passos infalsos...
os deslizes....os absurdos...
Cada vez que chego ou parto,
necessidade de pés no chão pra quem vive no alto,
baixo a cabeça pra ver onde piso, no descer ou subir do barco...
vejo o espelho d'água e observo...
sou eu refletido, distorcido homem,
que não cabe mais nas mãos de ninguém...
Amarga realidade refletida...
já não junto os cacos...
chuto, embaralho...
celebro a desordem!
Protagonista do acaso...
ninguém senhor de mim.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O flâneur negro

O flâneur negro
Lucio Xavier

11 de maio de 1874, a escrava Eva Ignácio entrava no terreiro para oferecer o Omolokum prometido a Oxum: Ore Yèyé o! Chamemos a benevolência da mãe. Um dia depois do parto, a Mater Dolorosa trazia o pequeno Rodolpho nos braços: Iyálòóde que me deu o rebento livre, leva livre ele agora pela vida!
Constantemente essa história vinha na memória de Rodolpho. Agora, ali, parado na esquina da Floriano, aos 79 anos, o velho cronista do jornal A Alvorada parecia, definitivamente, entender o significado daquilo. Flanando pelas ruas de Pelotas, parava o olhar nas águas paradas do Arroio Santa Bárbara e rabiscava no seu bloco, caminhos para a crônica do dia seguinte.
Os olhos que escreviam a cidade, naquele instante, se demoraram um pouco mais, além do costumeiro tempo de rememorar tempos. Buscava equivalência entre a sua vida e a vida do arroio.
Do vigor da época de líder operário, do aprendizado dos ofícios da cidade, das letras e dos punhos cerrados, conclamando a organização dos negros, restara a perplexidade diante da lembrança dos banhos vespertinos, dos folguedos e dos recreios de capoeiras e Pretas Minas, às margens do velho Santa.
A memória do flâneur negro, evidenciando a total perda afetiva com a cidade do passado, fundia-se lentamente com as ruínas da ponte de pedra. Naquele exato momento, todos os matizes dos cativeiros, dos palanques, das ombreadas com os companheiros de sindicato, toda poesia, todo o amargo de irromper percursos se reuniam, para apontar o quanto do arroio morrera dentro daquele andarilho.
No entanto, a voz da negra Eva ressoava mais alto e o flâneur, conforme Iyálòóde reservou para aquele filho, decidiu, pela última vez, seguir o curso lento do Santa Bárbara. Naquele mesmo dia, ainda deteve-se, demoradamente, na porta do terreiro da zona da Cerquinha, mas não entrou. Sentiu receio de prometer em oferenda qualquer Omolokum, pois agora, acreditava que nem mesmo Oxum teria forças para libertar aquela cidade, escrava das suas próprias nostalgias.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O ar (o vento)

O ar (o vento)
Vinícius de Moraes no livro A arca de Nóé

Estou vivo mas não tenho corpo
Por isso é que eu não tenho forma
Peso eu também não tenho
Não tenho cor.

Quando sou fraco
Me chamo brisa
E se assobio
Isso é comum
Quando sou forte
Me chamo vento
Quando sou cheiro
Me chamo pum!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Rio e eu...metamorseados

Rio e eu...metamorseados
Caiuá, outono 11.

A fronteira é a minha vida...
minha casa.
É o sol vermelho beijando o horizonte de um lado...
é a lua elegante se abrindo toda no céu ali onde é só virar o olhar...
é eu na ponte entre esses dois mundos...
com sabor de vinho.
Minha vida é como esse rio denso...
turbulento...de correntezas diversas...
mas intenso...e sempre vivo...
que carrega os desejos...
o que não presta também.
Mas que sempre presente,
beija e afaga as pessoas...
porque é acreditar...
persiste na sua insistência...
é dádiva...
é mais uma criança que vai nascer...
sou eu a embalar esse sonho...
com vento no rosto...
construindo o porvir.
Rio...é tu e eu...
metamorfoseados...
em paixão.

Morreu o Belizario

Morreu o Belizario
Caiuá, outono 11.

Morreu o Belizario.
Dizem que morreu do próprio veneno...
como Johnson da encruzilhada.
Dizem por aí que andava sonhando alto demais...
andarilho, se sentia pairando sobre as coisas...
tal como os orixás que lhe protegiam...
se confundiu com eles...
achou que era invulnerável pela vida mundana...
intocável...extra-terreno...
caiu.
Morreu o Belizario.
Uns dizem que o viram por algumas ruelas de pedra de determinada cidade...
outros que tem mania de ressucitar, e que logo retorna a navegar...
pra mim, dessa vez pegaram o sujeito...
ou o sujeito encontrou a quem lhe devia...
era mortal...e já não mais sabia.
Morreu o Belizario.
E foi na beira de um rio...
nos pés de Oxum...
sua mãe...
ali dizem ter dado o último suspiro...
e ter sangrado pela última vez.
Morreu o Belizario.
A cada travessia um novo risco...
a cada travessia uma nova experiência...
mas o amor é antigo...
e ele não soube navegar.
Morreu o Belizario.
Que vá em paz meu amigo.
Um abraço deste tripulante,
companheiro de tantas viagens.
O barco te espera...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Ás

Ás
Lúcio Xavier

Alcançou a alameda, ainda amanhecendo, ar abafado, ácido, álcool às alturas. Alucinando, ainda aspirava alguma ânsia, algo atenuante, algum alívio aprisionado. Antes astuto, avassalador, agora avisava... Ante a amargura, a alma atingira a área assustadora, alcançara a aparência alquebrada, aniquilada... Apagou!
Anoitecera, acordou... assustado. Alcançou alívio abafado, alquebrou a alameda, antes atenuada, alinhada. Anestesiado, ansiou ácido, álcool, alturas, amantes, assuntos. Agora, até a alma avisava: “Acabou!”
Ainda assim, assistiu à aurora... Abafada, alquebrada, ácida, amargurada. Arremessou-se à alameda, apagou a ânsia, aliviou a aparência. Avistou ao assalto, atingiu a alvorada... Assombrou! Alucinação aliviada, aceitou: assassino, aço, alma atravessada... Apagou!

quarta-feira, 30 de março de 2011

Infelizes de vós

Infelizes de vós
Bertolt Brecht no livro Poemas e Canções

Infelizes de vós!
Enquanto vosso irmão é maltratado, olhais para outro lado?
Grita de dor o ferido, e permaneceis calados?
A fera faz a ronda e escolhe a prêsa,
e vós dizeis: ela nos poupa, então não vamos dar sinal de desagrado.

Mas que cidade é essa, e que gente sois vós?
Quando numa cidade ocorre uma injustiça,
deve haver sentimento de revolta
e onde revolta não houver melhor será sumir
toda a cidade envolta em fogo, antes da noite cair!

segunda-feira, 7 de março de 2011

Poema da despedida

Poema da despedida
Mia Couto

Não saberei nunca
dizer adeus.

Afinal,
só os mortos sabem morrer.

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser.

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo.

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos.

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca.

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei.
Ainda assim,
escrevo.

Canção

Canção
Lila Ripoll no livro Por quê?

Por esse caminho
não vou transitar.
Não me levem não me levem
que há só uma barca no mar.

Estão trêmulas as águas
e há só uma barca no mar.
Por esse caminho
não vou transitar.
As águas são móveis.
É móvel o amor.
Quem quiser reter as nuvens
prenda o perfume da flor.

Trêmulas águas não podem
abrigar pesados sonhos.
As águas são móveis
e os sonhos... são sonhos.

O amor com as águas
aprende a passar.
É um porto de passagem.
Não é porto de ficar.
Por esse caminho
não vou transitar.

domingo, 6 de março de 2011

A pele da bétula

A pele da bétula
Pablo Neruda no livro Jardim de inverno

Como uma pele de bétula
és prateada e perfumada:
tenho que contar com teus olhos
ao descrever a primavera.

Mesmo não sabendo o teu nome
não há primeiro tomo sem mulher:
os livros se escrevem com beijos
(e eu lhes rogo que se calem
para que se aproxime a chuva).

Quero dizer que entre dois mares
a minha altura pendurou-se
como uma bandeira abatida.
E por minha amada sem olhar
estou disposto até a morrer
embora se atribua minha morte
ao meu deficiente organismo
e à tristeza desnecessária
depositada nos roupeiros.
O certo é que o tempo se escapa
e com voz de viúva me chama
desde estes bosques esquecidos.

Antes de ver o mundo, então,
quando meus olhos não se abriam
eu já dispunha de quatro olhos:
os meus próprios e os do meu amor:
não me perguntem se eu mudei
(e só o tempo é que envelhece)
(vive mudando de camisa
enquanto eu sigo caminhando).

E todos os lábios do amor
fizeram a minha roupagem
desde que me senti desnudo:
ela se chamava Maria
(talvez Teresa se chamasse),
e me acostumei a caminhar
consumido em minhas paixões.

Sendo tu a que tu serás
mulher inata do meu amor,
a que do barro foi formada
ou a feita de plumas
que voou
ou a mulher territorial
de cabeleira na folhagem
ou esta concêntrica caída
igual a uma moeda desnuda
no tanque dum topázio
ou a presente cuidadora
da minha errada indisciplina
ou bem a que nunca nasceu
e que eu espero desde sempre.

Porque a luz da bétula
é a pele da primavera.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Confiança

Confiança
Agostinho Neto no livro Poemas de Angola

O oceano separou-se de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo.

Na minha história
existe o paradoxo do homem dispero
enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construíam mundos maravilhosos.

John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continuou ignorante.

E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou certeza:

As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de pão!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Dedicatória

Dedicatória
Belizario, verão 11.

Para as crianças como nós,
que são sinceras, intensas,
e que enxergam o que os outros não vêem...
Meu cacoete de poeta,
minha fala de samba,
meu beijo de blues,
cotovelo da seresta...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Saudade

Saudade
Belizario, verão 11.

Saudade é o pássaro,
que todos os dias vem cantar à minha janela...
para me acordar.
Seu canto,
ora triste, ora alegre,
carrega a melodia dos que já se foram...
dos distantes...
dos quase perto.
Me faz sorrir, me faz chorar...
Faça sol ou faça chuva,
esse passarozinho,
pontualíssimo,
vem me acordar.
Inseparável,
me veste com o sabor de sua canção...
saudade.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Pandorga

Pandorga
Belizario, verão 11.

Como pandorga,
quanto mais solta, mais longe...
Assim fiz e cumpro meu retorno.
De gente que sabe do desafio...
mas não mensura a dor da partida.
E corre o risco de perder o sabor da chegada.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sabiá com trevas

Sabiá com trevas
Manoel de Barros
Em homenagem a minha amiga Vânia que admiro muito, companheira de boemia, arte e poesia.

VI

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.

Que importa

Que importa
(À Iná)
Lobo da Costa no jornal de Jaguarão, Atalaia do Sul, 4 de março 1880.

Qu'eimporta que o mundo diga
Que eu, doido, amei-te sem fé.
Se o mundo é tênue formiga
Que eu posso esmagar com o pé.

Qu'importa que o preconceito
Me atire negros baldões.
Se eu reivindico o direito
Das almas e corações.

Dobrar-me, qual débil vime,
Às convencões pessoais.
É tornar-me réu de um crime,
de um crime por que dou ais!

Por que saio, altas desoras,
A descantar meu amor,
Vibrando trovas sonoras
Qual uma abelha na flor?

Por que o ideal inflama
A minha mente infeliz?
E cruzo por minha dama
As armas de D. Diniz!

Por que descanso a guitarra
Da janela ao peitoril,
E canto como a cigarra
Em noites de manso abril?

Ai, Deus! Se eu não faço bulha
Nem incomodo os donzéis,
Que o diga a negra patrulha
Que passa para os quartéis.

Que importa, então, que os palhaços
Andem ralados por mim,
E queiram fazer pedaços
Do meu pobre bandolim.

A eles, se desconsolas,
Iná, que culpa me vem?
Diz-lhes que comprem violas
E vão cantando também.

Pois, quanto a mim, te asseguro
Que enquanto restar-me ardor,
Hei de cantar-te, eu juro,
As minhas trovas de amor.

Hei de dizer que és um anjo
Vagando no espaço aéreo,
Embora qualquer marmanjo
Suponha que eu falo sério.

Hei de elevar-te em meus cantos
Ao ideal da perfeição.
Encher-te a fronte de prantos,
De rosas, o coração.

Vagar contigo entre as gazas
Dos firmamentos azuis,
Subindo, nas tuas asas,
Ao grande Império da luz.

Hei de, sim!...Porque a desgraça
Não pode aviltar-me o ser.
Não vendo rimas na Praça,
Dou versos a quem os quer.

Mas pretenderem, menina,
Que eu não te ame sequer.
Que vão ditar leis na China
Se não tem mais que fazer.

Que enquanto o calor da vida
Meu terno peito animar,
Te direi sempre, querida,
Que nasci para te amar.


Retirado do livro Lobo da Costa em Jaguarão, de Eduardo Alvares de Souza Soares

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Travessia

Travessia
Milton Nascimento

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho prá falar
Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar

Vou seguindo pela vida me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar

http://www.youtube.com/watch?v=x7QcCrUqMkg&feature=player_embedded#at=29

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Queda livre das alturas que faço

Queda livre das alturas que faço
Belizario, verão 11.

Meio cá, meio lá.
Mas não sou metades, sou pedaços!
Quanto mais a partida se aproxima,
mais me desfaço.
Saudade?!
Me acompanha desde que nasci...
Tempo?!
É o que me dribla e me faz cair no chão...
Amor?!
É o que de vez em quando junta meus pedaços...
Paixão?!
É o que me faz tantas vezes em sonho...
Do chão, já conheço o sabor...
Dos céus, pulo tanto que um dia ainda vou voar...
nem que abra um guarda-chuva em dia de vento...
Sou a queda livre das alturas que faço.
Sou a correnteza do rio em dias de rebeldia...
que a força se faz na contra-mão.

sábado, 22 de janeiro de 2011

XII

XII
Manoel de Barros no livro O livro das ignorãças

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Bendito carteiro!

Bendito carteiro!
Belizario, verão 11.


Bendito carteiro!
Que trás meus livros...
sempre sorridente, na mesma hora de sempre!
Nessa batalha com o digital,
o papel ganhou pra mim...
Bendito carteiro,
pássaro alado...
que de longe trás as inspirações sem fim.
Fico imaginando...
estes livros passeando de barco pelos rios,
encontrando Sidartha, Thiago...
Andando de carro de boi com Josué, Amado...
Sobrevoando e tramando horizontes com Neruda...
no pampa de Silveira...nas ruas de pedra centenárias de Gullar...
e chegando nas minhas mãos...cheirosos...aventurosos...
cheios de carinho...Bendito carteiro!
Muito obrigado!
Ah, como são lindos...
e viva Manoel de Barros!

Lição do pinto

Lição do pinto
Patativa do Assaré no livro Ispinho e Fulô

Versos recitados pelo autor em um comício em favor da anistia.


Vamos meu irmão,
A grande lição
Vamos aprender,
É belo o instinto
Do pequeno pinto
Antes de nascer.

O pinto dentro do ovo
Está ensinando ao povo
Que é preciso trabalhar,
Bate o bico, bate o bico
Bate o bico tico tico
Pra poder se libertar.

Vamos minha gente,
Vamos para a frente
Arrastando a cruz
Atrás da verdade,
Da fraternidade
Que pregou Jesus.

O pinto prisioneiro
Pra sair do cativeiro
Vive bastante a lutar,
Bate o bico, bate o bico,
Bate o bico tico tico
Pra poder se libertar.

Se direito temos,
Todos nós queremos,
Liberdade e paz,
No direito humano
Não existe engano,
Todos são iguais.

O pinto dentro do ovo
Aspirando um mundo novo
Não deixa de beliscar
Bate o bico tico tico
Bate o bico, bate o bico,
Pra poder se libertar.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Vigiando o oco do tempo

Vigiando o oco do tempo
Waly Salomão no livro Algaravias

Deslizo,
oculto aqui,
vigiando o oco do tempo.
Espaço ermo, parado.
Nada acontece. Nada parece acontecer.
Mas algo flui, o irremediável,
queimando todas as pontes de regresso.
Todo o passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.
A velha senhora viajada,
detentora de recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.
Viver em mudança.
O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pêlo felpudo das aranhas caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena um homem.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sagitarianos...

Sagitarianos...
Belizario, verão 11.

Não queiram ver um Sagitariano com raiva...
não queiram ver!
Atravesse a rua, vai por mim, não vale a pena.
Tens uns tipos então...impossíveis!
Costumam ter sobrancelhas juntas, grudadas, parecem taturanas!
É isso!
Essa metade homem, metade cavalo do Sagitariano...é metade bicho!
Vai entender esse tipo de gente...ou de animal...
sempre insatisfeita!
Mania de estar com o olhar sempre longe...dificilmente vive o presente.
Na verdade eles queriam ser como os seus primos alados, os Pegasus.
Queriam voar!
Mas não podem, não tem asas...pobrezinhos...
daí tanta raiva quando são contrariados!
Tá certo que podem ser na maioria do tempo bem amáveis...
mas não queiram os ver irritados!
Não queiram ver!
É patada para todo o lado!
Ouvi dizer por aí que este tipo de gente...ou de bicho...anda raro.
Essa metade homem, metade cavalo do Sagitariano,
é água transbordante...
é flor da pele...
é espontaneidade e utopia...
e ainda tem aqueles que escrevem poesia...esses são casos perdidos...
se os ver, vire a esquina!
Existem poucos por aí...e andam escondidos...
é tempo de vê-los de cabeça baixa ou com a cara nos livros...
andam bem estranhos...
Tem pessoas que se dão bem com esse tipo de gente...ou de bicho...
Essa metade homem, metade cavalo do Sagitariano...
Jamais coloques neles, rédeas ou tapa-olhos...
deixe-os livres com a fuça nas estrelas...
essa mania de arco e flecha apontando pro infinito,
é bem bonitinha, eu conheço, é sincero amor,
mesmo metade homem, metade cavalo...
ah, como é difícil esse povinho de Sagitário.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

No Banho

No Banho
Lobo da Costa no livro Dispersas

Na fresca praia das belas
- Do mar o rosado vaso, -
Banhavam-se umas donzelas,
Quando passei por acaso.

Batia a lua nas águas,
Com poético clarão,
E as vagas, lambendo as fráguas,
Encantavam a soi'dão!

Em terra, a velha, sentada...
A pobre velha viúva,
Riscava a areia molhada
Co'a ponta do guarda-chuva.

Os gritos, as risadinhas,
Das lindas moças, no banho,
Atraem as vistas minhas,
E chego, apesar de estranho.

E caio n'agua... a velhota,
Não me viu... toma rapé,
E apenas diz em risota:
- "Cuidado com o jacaré!"

Afinal, a mais bonita,
Filei mesmo por um pé,
Enquanto a velhinha grita
- "Cuidado com o jacaré!"

Que gozo estranho! que dita!
A onda nos embalava,
Ora a terra facilita,
Ora o mar nos carregava!

E a velha sempre gritando:
- "Cuidado com o jacaré!"
E nós, nas ondas, rolando...
E a velha a tomar rapé...

Porto Alegre, 1885.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O andarilho

O andarilho
Manoel de Barros no Livro sobre nada

Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Perdi

Perdi
Belizario, verão 11.

Foi por um instante...
Mas pensei que seria daqueles sortudos,
que depois de uma separação,
se apaixonam de novo pela mesma mulher...
ganham outra chance.
Ah, o poema já estava escrito na minha cabeça...

Mais uma vez errei,
e mais outra chance se foi.
Achei que poderia...
que conseguiria reinventar o amor...
em mim...
em ti...
perdi.

Falavas em juntar cacos,
estou aqui a procurar meus restos...
como diria o poeta: fico no fim que mereço!
E como mereço...e como mereci.

Contraditório mais uma vez me fiz...
fui promíscuo com o adeus.
Perdi.

Tempo de amor

Tempo de amor
Vinícius de Moraes

Ah, bem melhor seria
Poder viver em paz
Sem ter que sofrer
Sem ter que chorar
Sem ter que querer
Sem ter que se dar

Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar

Ah, mundo enganador
Paz não quer mais dizer amor

Ah, não existe coisa mais triste que ter paz
E se arrepender, e se conformar
E se proteger de um amor a mais

O tempo de amor
É tempo de dor
O tempo de paz
Não faz nem desfaz

Ah, que não seja meu
O mundo onde o amor morreu

Lava e leva

Lava e leva
Belizario, primavera 09.

Meus amores se desfazem entre minhas mãos.
São gotas d'água, são grãos de areia.
Pegasus a bater asas nos céus.
Pássaros que migram para novas terras.
São como pé de vento, pé de chuva...
lava e leva.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O teu mais velho canto

O teu mais velho canto
Ferreira Gullar trecho de A Fala no livro A Luta Corporal

O teu mais velho canto,
arrastado com sol, varrido
no coração das épocas,
eu o recolho, agora, de entre estas pedras, queimado.

Tua boca, real,
clareia os campos que perdemos.
Eu jazo detrás da casa, aonde já ninguém vai
(onde a mitologia sopra, perdida dos homens,
entre flores pobres).

sábado, 8 de janeiro de 2011

O enterrado vivo

O enterrado vivo
Carlos Drummond de Andrade no livro José Fazendeiro do Ar Novos Poemas

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O apito do trem

O apito do trem
Belizario, verão 11.

Amanhecera novamente abafado. A cidade parecia de propósito envolver os habitantes naquela sensação de desespero. Ela acordara novamente com a garganta apertada... o peito também. O bairro carregava aquele sentimento de desconfiança, mas ao mesmo tempo de fascínio com o apito do trem. Contavam que o apito tinha o efeito hipnótico de atrair os desesperados, os entristecidos... para os trilhos, para baixo do trem. Levantara, não lavara o rosto. Com as janelas fechadas olhava a xícara de café... café nada, qualquer pó preto industrial chamado de café... minguado... girava a colher devagar... pensava no antigo companheiro que havia partido nos braços de outra mulher... mais jovem... no filho que vagara noite e dia pelas ruas podres do centro da cidade... onde dormira...se deitara...não o recebia mais em sua casa, já cansara de ser roubada... naquela manhã fazia exatamente um mês que ele havia partido. O pão seco não descia na garganta...fome já não tinha a muito tempo. Os trilhos e suas histórias não saiam da cabeça... tomou um banho... colocou o vestido que a muitos anos já não usava... arrumou os cabelos... maquiou-se... o calor abafado a fazia suar...a maquiagem borrava – Que merda de cidade! Tomou um copo d’água. Sentou na cadeira que compunha os poucos móveis da sala... de uma fresta pequena da janela enxergava os raios de sol. De frente a porta, esperava. De longe, a locomotiva sua sinfonia executava... se levantou, pegou a chave...abriu, fechou a porta. Era o último canto que faltava...a profecia do bairro se efetivava.

Meu tempo é ontem

Meu tempo é ontem
Belizario, verão 11.

Meu telhado é de vidro.
Girei o braço, a pedra resvalou... em mil pedaços me vi.
Em Satolep está nublado...
Na beira da lagoa o vento carrega os pequenos frutos das figueiras...
Na beira do mar o pequeno cusco está perdido....
Meu tempo é ontem...cansei de mim.