Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quarta-feira, 30 de março de 2011

Infelizes de vós

Infelizes de vós
Bertolt Brecht no livro Poemas e Canções

Infelizes de vós!
Enquanto vosso irmão é maltratado, olhais para outro lado?
Grita de dor o ferido, e permaneceis calados?
A fera faz a ronda e escolhe a prêsa,
e vós dizeis: ela nos poupa, então não vamos dar sinal de desagrado.

Mas que cidade é essa, e que gente sois vós?
Quando numa cidade ocorre uma injustiça,
deve haver sentimento de revolta
e onde revolta não houver melhor será sumir
toda a cidade envolta em fogo, antes da noite cair!

segunda-feira, 7 de março de 2011

Poema da despedida

Poema da despedida
Mia Couto

Não saberei nunca
dizer adeus.

Afinal,
só os mortos sabem morrer.

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser.

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo.

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos.

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca.

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei.
Ainda assim,
escrevo.

Canção

Canção
Lila Ripoll no livro Por quê?

Por esse caminho
não vou transitar.
Não me levem não me levem
que há só uma barca no mar.

Estão trêmulas as águas
e há só uma barca no mar.
Por esse caminho
não vou transitar.
As águas são móveis.
É móvel o amor.
Quem quiser reter as nuvens
prenda o perfume da flor.

Trêmulas águas não podem
abrigar pesados sonhos.
As águas são móveis
e os sonhos... são sonhos.

O amor com as águas
aprende a passar.
É um porto de passagem.
Não é porto de ficar.
Por esse caminho
não vou transitar.

domingo, 6 de março de 2011

A pele da bétula

A pele da bétula
Pablo Neruda no livro Jardim de inverno

Como uma pele de bétula
és prateada e perfumada:
tenho que contar com teus olhos
ao descrever a primavera.

Mesmo não sabendo o teu nome
não há primeiro tomo sem mulher:
os livros se escrevem com beijos
(e eu lhes rogo que se calem
para que se aproxime a chuva).

Quero dizer que entre dois mares
a minha altura pendurou-se
como uma bandeira abatida.
E por minha amada sem olhar
estou disposto até a morrer
embora se atribua minha morte
ao meu deficiente organismo
e à tristeza desnecessária
depositada nos roupeiros.
O certo é que o tempo se escapa
e com voz de viúva me chama
desde estes bosques esquecidos.

Antes de ver o mundo, então,
quando meus olhos não se abriam
eu já dispunha de quatro olhos:
os meus próprios e os do meu amor:
não me perguntem se eu mudei
(e só o tempo é que envelhece)
(vive mudando de camisa
enquanto eu sigo caminhando).

E todos os lábios do amor
fizeram a minha roupagem
desde que me senti desnudo:
ela se chamava Maria
(talvez Teresa se chamasse),
e me acostumei a caminhar
consumido em minhas paixões.

Sendo tu a que tu serás
mulher inata do meu amor,
a que do barro foi formada
ou a feita de plumas
que voou
ou a mulher territorial
de cabeleira na folhagem
ou esta concêntrica caída
igual a uma moeda desnuda
no tanque dum topázio
ou a presente cuidadora
da minha errada indisciplina
ou bem a que nunca nasceu
e que eu espero desde sempre.

Porque a luz da bétula
é a pele da primavera.