Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quarta-feira, 25 de maio de 2011

De que valeu?!

Ainda escritos do livro sujo de terra fértil do meu amigo Belizario...começo a desconfiar...dentre os escritos antigos, observo que somam-se alguns novos que eu não havia notado...o caderno parece se multiplicar...

De que valeu?!
Belizario, outono 11.

De que vale o dinheiro...
o tal futuro garantido...
se meu mundo ideal não é matéria...
é viver entre meus amores, meus amigos?!

De que vale isolar-se no fundo do mundo,
onde no primeiro olhar, o charme te convence em belas vistas,
se não é de esplendor e glamour que eu vivo...
é no ritmo acelerado das luzes...na luta cosmopolita?!

Quando esse anzol chamado destino me fisgou,
para não doer demais, decidi ajudar e corri...
de que valeu, se semi-vivo fico a boiar,
esperando meu corpo desistir,
pra despencar até o escuro fundo do rio?!

Numa cidade vazia...
de poucos companheiros a medir ombros comigo,
fico a me perguntar...
de que valeu?! Se ninguém me ouve...
se fico a poetar e cantar sozinho...

De que vale um rio,
se não se pode navegar?!
Pra apagar fogo talvez,
dos sem medidas,
gente como eu,
que gosta de faiscar?!

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A Imagem Perdida

A Imagem Perdida
Mario Quintana no livro Preparativos de viagem

Como essas coisas que não valem nada
E parecem guardadas sem motivo
(Alguma folha seca...uma taça quebrada)
Eu só tenho um valor estimativo...

Nos olhos que me querem é que eu vivo
Esta existência efêmera e encantada...
Um dia hão de extinguir-se e, então, mais nada
Refletirá meu vulto vago e esquivo...

E encerraram-se os olhos das amadas,
O meu nome fugiu de seus lábios vermelhos,
Nunca mais, de um amigo, o caloroso abraço...

E, no entretanto, em meio desta longa viagem,
Muitas vezes parei...e, nos espelhos,
Procuro em vão, minha perdida imagem!

Lágrimas de crocodilo

Do livro sujo de terra fértil...herança de Belizario.

Lágrimas de crocodilo
Belizario, outono 11.

Meu choro não tem mais peso pra ninguém..
são lágrimas de crocodilo...
desdém dos que me tratam como desaparecido,
daquele que não mais convém.

Sugiro uma volta pelo mundo...
olhar atento ao terreno...
ao mágico também...

Nas coisas que acredito,
há espaço pro humano desatino...
os feitos de Olorum são gente como eu.

Imperfeitos meninos,
que colhem o que semeiam...
desafortunados de futuro...
calados pelo destino...
sei bem.

domingo, 15 de maio de 2011

Nasci antes do tempo

Nasci antes do tempo
Cora Coralina no livro Vintém de Cobre

Tudo que criei e defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?

Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
Fulano nasceu antes do tempo,
Guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
Nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou.
Você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.

sábado, 14 de maio de 2011

Não aprendo a lição

Não aprendo a lição
Thiago de Mello no livro Mormaço na floresta

A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.

Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça.
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.

A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Desencantado

Dias desses na beira do São Gonçalo, na caída do dia, uma preta velha se aproximou de mim...abriu minha mão e me entregou um caderno. Reconheci os escritos do Belizario. Disse-me aquela mulher de cabelos brancos: - Mandaram lhe entregar...está sujo de barro porque veio de terra fértil, de beira de rio. Ela encontrou os escritos no mesmo dia em que meu amigo partiu...havia uma folha solta no velho caderno sujo de barro...a descrevo aqui.


Desencantado
Belizario, outono 11.

Cansado dessa gente que insiste,
que aponta o dedo...
que exige de mim sempre um doce gesto.
São os mesmos que me espalham pelo chão...
que com os pés me arrastam...
como vidro preso embaixo do sapato...que grita e ringe...
criam nojo e me vendem feito fruta podre,
a celebrar o desencantado.
Lembram e relembram meus passos infalsos...
os deslizes....os absurdos...
Cada vez que chego ou parto,
necessidade de pés no chão pra quem vive no alto,
baixo a cabeça pra ver onde piso, no descer ou subir do barco...
vejo o espelho d'água e observo...
sou eu refletido, distorcido homem,
que não cabe mais nas mãos de ninguém...
Amarga realidade refletida...
já não junto os cacos...
chuto, embaralho...
celebro a desordem!
Protagonista do acaso...
ninguém senhor de mim.