Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sábado, 22 de outubro de 2011

Olhos de tango

Olhos de tango
Belizario, primavera 11.

Lá estava ela diante do espelho. Prendendo os cabelos, os óculos na penteadeira... aqueles olhos puxados...boêmios. Um pouco de perfume, discreto batom. Era terça-feira, noite de boteco... já havia sido nas sextas, nos sábados, mas agora era terça. Pelo menos os amigos, ainda pertos e vivos, frequentavam o local. De vez em vez aparecia um grupo de jovens, daqueles despertos, espertos. Buscando reminiscências de um passado para ela tão longínquo... lembrava-se dos tempos de diva... como gostavam de dizer no Brasil. Não havia homem que com torcer de pescoço deixasse de brindar sua sensualidade, seus olhos cinzentos de tango. Una Argentina de las calles con colores vivas...donde se lloravan los perdidos amores...donde se cantó la libertad! Tocava a campainha, era justamente ela, sua amiga Libertad, antiga bailarina de cabaré, manicure de um salão pequeno ao pé da ladeira esprimido entre prédios. Não há quem pague o cheiro de noite... sentir o pé no chão! A saudação na porta, o primeiro acorde do violão... levantava ela... de olhos fechados, o primeiro suspiro do bandonion, o famoso bordão: “Por una cabeza...”.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Integração nas prateleiras

Integração nas prateleiras
Belizario, primavera, 11.

Na antiga Guarda da Lagoa,
Mas falo nos atuais dias,
Comportamento corriqueiro
é sacanear quem vem de fora...
apesar de tudo, com cantos de viva, viva!..
entoa certo povo,
na Câmara, na rádio, na praça,
salve esta nova raça,
dinherus turistas!

Sem falar na escrita dos jornais...
Onde a cidade brinda a saída,
O fugir da estagnada economia.
Explorando o passado “glorioso”,
e a zona franca...salve a classe média em euforia!

É uma espécie de sentimento geral,
Que esperto é o que te passa a perna.
Pede mais quando o valor é pouco,
Vende como bom o que não mais presta!

O comportamento, diriam alguns,
É generalizado...
Vem também com quem de longe chega...
Desesperado pelo desconto,
No atropelar dos freeshops e no bater das tarjetas...

Tudo bem...dou razão para estas bocas,
Que são livres da xenofobia provincialesca.
Mas ainda quero ver em alguma cidade,
O manancial que jaz neste fortim,
deste tanto de gente picareta...

Ah, que saudade dos tempos que não vivi,
Dos outros tempos desta fronteira.
Onde o rio era um passo fluído,
E a integração não era só nas prateleiras...

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Inesperados ventos, brados anarquistas

Inesperados ventos, brados anarquistas
Belizario, primavera 11.

Foi na boca de um menino que me reencontrei.
Quando não respeitou a convenção,
e peitou o ódio tirano
do que se regozija
e se declara libertador.

Passo a frente não sabia mais dar,
rodopiava em torno do próprio rabo,
tal qual cusco amarrado, focinho reprimido,
com grades ao redor,
sem na rua um passo dar.

Blindado pela indiferença,
pela falta de coragem,
que o sangue juvenil,
pelo menos em alguns e saúdo os que restam,
não aceita, não compensa,
ainda insistem em bradar.

São tempos de água parada...
de acomodação... e convenção com os alpinistas,
escalando e disputando os cargos mais ínfimos,
famintos de poder,
falo principalmente das gerações mais novas...
mas também das mais antigas.

Suerte e ainda bem,
que inesperados ventos,
feito fina brisa ou intenso tufão,
ainda existem na terra,
levantando poeira do chão.

Trazem antigos brados anarquistas,
dos mais longes cantos do mundo...
e a juventude ainda resiste! E se multiplica!

Tumultua as águas,
não aceita o fatalismo, a apatia,
dos revolucionários de boca,
e dessas bocas urge ainda
o eterno protesto, que se atualiza, a maior reivindicação:
contra a fome, o estado fascista, a burguesia e a opressão.

sábado, 1 de outubro de 2011

O negro fala sobre rios

O negro fala sobre rios
Langston Hughes
Tradução: Carlos Machado


Conheço rios:
Conheço rios tão antigos quanto o mundo e mais
velhos que o fluxo de sangue humano
nas veias humanas.

Minha alma se tornou profunda como os rios.

Banhei-me no Eufrates quando eram jovens as
auroras.
Construí minha cabana junto ao Congo e ele
me cantou canções de ninar.

Olhei para o Nilo e acima dele levantei as
pirâmides.
Ouvi o canto do Mississippi quando Abe Lincoln
desceu até New Orleans e vi seu seio
lamacento tornar-se ouro, ao pôr-do-sol.

Conheço rios:
Antigos, cinzentos rios.

Minha alma se tornou profunda como os rios.