Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Oxalá vem chegando

Oxalá vem chegando
Belizario, primavera 11.

Quem é esse no espelho?!
Que não me encara nos olhos...
Com um sorriso amarelado,
de canto de boca,
debochado...?!

É o tempo que vai,
desenfreado,
irônico com a vida,
e agora sou eu que os olhos abaixo.

Quem me dera meter a mão,
atravessar o espelho,
segurá-lo pelo pulso...!!
Trinta vezes tentei...

Shhh! Pediu-me silêncio.
O sol todo dia se levanta,
Oxalá vem chegando,
para confortar os de bem.

sábado, 3 de dezembro de 2011

XXIX

XXIX
Hilda Hilst no livro Cantares de Perda e Predileção

Faz de mim tua presa:
Raiz para o teu ódio.

Amor para o meu navegar
E abrandado cessa
De lançar tua rede
Tua armadilha.

Faz de mim tua sombra
E injuria, sangra
Essa que te descansa
Na tua soberba escalada ao meio-dia.
Golpeia
Para amansar tua fina presa.

Faz de mim tua boca
E cobre de saliva
Tua cria de carne e solidão.
E abrandado cessa
Teu exercício de virtude e treva.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

XXVIII

XXVIII
Hilda Hilst no livro Cantares de Perda e Predileção

Ronda tua crueldade.
Esconde, avança.

Até que me descubras
Fissura rigorosa
Na tua garra
Ajustado tensor
Para tua lança.

Ronda meu abandono
Persegue
Trança meu desamparo
Sono e tua iniqüidade.
Ritualiza a matança
De quem só te deu vida.

E me deixa viver
Nessa que morre.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Composição

Composição
Carlos Drummond de Andrade no livro José Fazendeiro do Ar Novos Poemas

E é sempre a chuva
nos desertos sem guarda-chuva,
algo que escorre, peixe dúbio,
e a cicatriz, percebe-se, no muro nu.

E são dissolvidos fragmentos de estuque
e o pó das demolições de tudo
que atravanca o disforme país futuro.
Débil, nas ramas, o socorro do imbu.
Pinga, no desavorado campo nu.

Onde vivemos é água. O sono, úmido,
em urnas desoladas. Já se entornam,
fungidas, na corrente, as coisas caras
que eram pura delícia, hoje carvão.

O mais é barro, sem esperança de escultura.