Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Lindamente

Lindamente
Belizario, inverno 15.

Longa jornada,
De ventos difíceis,
E aquele subir das escadas...
Fizeram explodir a boniteza!
Sorridente e linda, como sempre existiu!
Eram passos firmes,
De quem amadureceu na vida,
Sabedoria tecida nas ruas de pedras,
 de uma antiga Vila Rica,
e a recompensa de uma cerveja bem gelada,
celebra esta vida de autonomia.
Não há experiência
Que se esgote,
Há a sapiência de quem sucumbiu,
Mas agarrada na terra brotou uma fortaleza
E cruzou para a outra margem do rio.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Bela Cigana


Bela Cigana
João Nogueira

Anda retira de cima esse manto de medo
Abre essa mão que eu vou revelar um segredo
Vou, meu irmão, lhe ensinar beber água na fonte
Poder caminhar os caminhos do monte
Aonde amanhã novo sol vai nascer
É, nessa vida ninguém foge porque tem medo
É justamente o contrário, medrou quem fugiu
Vai meu irmão rasga as folhas do teu samba-enredo
Desvia teus barcos dos velhos rochedos
Mais tarde ou mais cedo meu darás razão
E foi assim que me disse a bela cigana
De brincos de ouro, de porte de dama
De vida e de morte no fundo do olhar
Leu minha mão e rezou e levou meu dinheiro
Mas a tal cigana não sabe, talvez
Tirou meu veleiro do fundo do mar


Versão em música:
https://www.youtube.com/watch?v=yo9oSmx4zNc

domingo, 12 de julho de 2015

Foi na rota do amor e da boniteza

Foi na rota do amor e da boniteza
Belizario, inverno 15.

Foi na rota da boniteza e do amor,
Que me reencontrei.
Procurei acertar os ponteiros...
Dos tempos ídos,
E quiçá dos que virão além.
Fui buscar no eu mais profundo,
As pessoas que me fazem bem.

Foi na rota da boniteza e do amor,
Que me reencontrei.
Ainda de sandália de couro,
Com os cabelos longos,
De espírito libertário...
Pq só quero ao meu lado,
Quem me ama de graça,
E que só quer me ver bem.

Foi na rota da boniteza e do amor,
Que me reencontrei.
Assumindo minhas finitudes,
Mas apostando imensamente,
Na minha capacidade de plantar flores,
De construir jardins
De perfumar outras vidas.

Pois foi assim.
Foi na rota da boniteza e do amor,
Feita de anjos,
Artistas e poetisas,
Que me reencontrei.


quinta-feira, 9 de julho de 2015

Amor Feinho


Amor Feinho
Adélia Prado no livro Bagagem

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Os Três Mal-Amados


Os Três Mal-Amados
João Cabral de Melo Neto no Livro Os Três Mal-Amados


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Amor Violeta


Amor Violeta
Adélia Prado no livro Bagagem

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Clara


Clara
Belizario, inverno 15.

Para Vinícius e Angélica...e claro, para a Clara!

Saravá, dona moça.
Te chega e seja bem vinda!
Serás um raio de flor.
Teus dois amantes,
te esperam,
espírito de luz...
e de amor!

E virás nesta terra de mulher,
de vento, de chão e de água...
as vezes doce, outras vezes salgada...
De Iansã, Oxum e Yemanjá!

Dona Clara, moça Clara,
te evocamos linda menina!
Para nos dar alegria,
nos dar esperança,
destinar nossas vidas!

Teus dois amantes,
babando de alegria,
te mostram os caminhos das pedras...
são lindas almas amigas,
e que serão eternas flores dos teus dias.

E chegas nesta terra de mulher,
de vento, de chão e de água,
as vezes doce, outras vezes salgada...
de Iansã, Oxum e Yemanjá!

Moça... dona Clara!
Nosso saravá!

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Bagaço


Bagaço
Belizario, inverno 15.

Ainda vou deixar de ser este bagaço.
Que é chutado, arrastado,
esfregado pelo chão.
Ainda vou parar de ser tratado,
como algo descartável...
Como algo que se mastiga,
 e que se cospe pelas sarjetas da vida,
sem compaixão.
Ainda vou funcionar que nem gasolina,
Que incendeia com toda força,
Cheia de esplendor.
Ainda vou ser fogo que aquece,
Calor para outras vidas...
Ainda voltarei a ser amor.
Ainda me farei paixão.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Na procissão da tristeza


Na procissão da tristeza
Belizario, outono 15.

A gente vai perdendo a alma aos poucos.
Como se fosse procissão... de tristeza.
Elas passam em ritmo lento, em lamento...
Ornamentadas de saudade.
Uma a uma, 
gota de sangue por gota de sangue,
vamos sucumbindo aos poucos,
no som do arrastar dos pés no chão seco.
E a poeira levantada nos cega,
e a nossa vida perde todo o enredo.
É na procissão da tristeza,
Que morro todo dia,
No rugir das sandalhas velhas,
Na solidão do meu lamento.

terça-feira, 16 de junho de 2015

minhas 7 quedas


minhas 7 quedas
Paulo Leminski no livro Caprichos e relaxos

minha primeira queda
não abriu o paraquedas
daí passei feito uma pedra
pra minha segunda queda
da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda
nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda
na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo

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quem me dera um abutre
pra devorar meu coração!
naco de carne crua
comida de pé no balcão!
quem me dera um apache
pra colher meu escalpo!
que desta vez não escape
nenhum disfarce!
tomara que um furacão
caia sobre meu navio!
que nenhum deus nem dragão
possa ser meu alívio!

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Poema perto do fim


Poema perto do fim
Thiago de Mello no livro Faz escuro mas eu canto

A morte é indolor.
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Doces e miúdos gestos


Doces e miúdos gestos
Belizario, outono 15.

Sou devoto das coisas pequeninas,
Das sutilezas cotidianas.
Descuidadas dádivas...
Os jeitos e trejeitos de uma pessoa.
Como são doces os miúdos gestos!
Como é amarga a vida
 de quem espera, ou sobrevive
 apenas com atos grandiosos.
Perde a resistência que se faz diária,
O aprendizado da convivência.
Perde a singeleza do sorriso...
Perde minha capacidade de intensificar o amor...
Que é só boniteza.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sangrado


Sangrado
Belizario, outono 15.

Acabou.
É outono. As folhas rolam nas pedras...
Úmidas, elas choram poemas de amor. 
Meu corpo bóia nas águas do rio...
Devagar, ele bate no cais...
Ainda permaneço de olhos abertos.
Olho para o céu... agonizo.
Foi no coração esta punhalada...
Que sangra sem dó.
De vermelho, tingem-se as ondas dos sonhos...
E meus beijos derrotados,
E os suspiros de paixão, em vão, 
Se aglomeram entre esgoto e limo...
e se fazem podridão.
Morri.
Sem dó...na esquina da mentira,
sangrado o peito,
coração na mão.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Queime o satélite


Queime o satélite
Belizario, outono 15.

Desliga o computador!
Desliga o telefone!
Para de lamber espelho!
Vem me abraçar, vem me reconhecer!
Como são frágeis os narcisos da rede social.
Gente que se cutuca toda pelo efêmero...
Vem cá minha flor!
Deixa eu te provar!
Te auto afirmes na minha boca!
A vida é feita de barro e de chão!
Vamos chafurdar,
Vem rolar comigo!
Vem me lambuzar!

Dilúvio


Dilúvio 
Belizario, outono 15.

Vi passar na correnteza... e me joguei!
Era um dilúvio!
Mas como todo fenômeno deste tipo,
o milagre veio.
Teci esta boniteza...a dois...a três...a quatro!
Saboreava cada pedacinho deste meu viver.
Na espiadinha das coisas simples,
fui fortalecendo a certeza,
de que amor é coisa a se fazer na caminhada...
Amadurecendo as entranhas da ansiedade.
O efêmero é imaturidade do tempo!
Ilusão de quem se alimenta de espelho!
Ser feliz não é ter coisa plena.
A intensidade vem e vai...
É preciso entender a vida como as manobras do vento...

II

Hilda Hilst no livro Júbilo, memória, noviciado da paixão

II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.