Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 30 de junho de 2015

Clara


Clara
Belizario, inverno 15.

Para Vinícius e Angélica...e claro, para a Clara!

Saravá, dona moça.
Te chega e seja bem vinda!
Serás um raio de flor.
Teus dois amantes,
te esperam,
espírito de luz...
e de amor!

E virás nesta terra de mulher,
de vento, de chão e de água...
as vezes doce, outras vezes salgada...
De Iansã, Oxum e Yemanjá!

Dona Clara, moça Clara,
te evocamos linda menina!
Para nos dar alegria,
nos dar esperança,
destinar nossas vidas!

Teus dois amantes,
babando de alegria,
te mostram os caminhos das pedras...
são lindas almas amigas,
e que serão eternas flores dos teus dias.

E chegas nesta terra de mulher,
de vento, de chão e de água,
as vezes doce, outras vezes salgada...
de Iansã, Oxum e Yemanjá!

Moça... dona Clara!
Nosso saravá!

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Bagaço


Bagaço
Belizario, inverno 15.

Ainda vou deixar de ser este bagaço.
Que é chutado, arrastado,
esfregado pelo chão.
Ainda vou parar de ser tratado,
como algo descartável...
Como algo que se mastiga,
 e que se cospe pelas sarjetas da vida,
sem compaixão.
Ainda vou funcionar que nem gasolina,
Que incendeia com toda força,
Cheia de esplendor.
Ainda vou ser fogo que aquece,
Calor para outras vidas...
Ainda voltarei a ser amor.
Ainda me farei paixão.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Na procissão da tristeza


Na procissão da tristeza
Belizario, outono 15.

A gente vai perdendo a alma aos poucos.
Como se fosse procissão... de tristeza.
Elas passam em ritmo lento, em lamento...
Ornamentadas de saudade.
Uma a uma, 
gota de sangue por gota de sangue,
vamos sucumbindo aos poucos,
no som do arrastar dos pés no chão seco.
E a poeira levantada nos cega,
e a nossa vida perde todo o enredo.
É na procissão da tristeza,
Que morro todo dia,
No rugir das sandalhas velhas,
Na solidão do meu lamento.

terça-feira, 16 de junho de 2015

minhas 7 quedas


minhas 7 quedas
Paulo Leminski no livro Caprichos e relaxos

minha primeira queda
não abriu o paraquedas
daí passei feito uma pedra
pra minha segunda queda
da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda
nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda
na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo

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quem me dera um abutre
pra devorar meu coração!
naco de carne crua
comida de pé no balcão!
quem me dera um apache
pra colher meu escalpo!
que desta vez não escape
nenhum disfarce!
tomara que um furacão
caia sobre meu navio!
que nenhum deus nem dragão
possa ser meu alívio!

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Poema perto do fim


Poema perto do fim
Thiago de Mello no livro Faz escuro mas eu canto

A morte é indolor.
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Doces e miúdos gestos


Doces e miúdos gestos
Belizario, outono 15.

Sou devoto das coisas pequeninas,
Das sutilezas cotidianas.
Descuidadas dádivas...
Os jeitos e trejeitos de uma pessoa.
Como são doces os miúdos gestos!
Como é amarga a vida
 de quem espera, ou sobrevive
 apenas com atos grandiosos.
Perde a resistência que se faz diária,
O aprendizado da convivência.
Perde a singeleza do sorriso...
Perde minha capacidade de intensificar o amor...
Que é só boniteza.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sangrado


Sangrado
Belizario, outono 15.

Acabou.
É outono. As folhas rolam nas pedras...
Úmidas, elas choram poemas de amor. 
Meu corpo bóia nas águas do rio...
Devagar, ele bate no cais...
Ainda permaneço de olhos abertos.
Olho para o céu... agonizo.
Foi no coração esta punhalada...
Que sangra sem dó.
De vermelho, tingem-se as ondas dos sonhos...
E meus beijos derrotados,
E os suspiros de paixão, em vão, 
Se aglomeram entre esgoto e limo...
e se fazem podridão.
Morri.
Sem dó...na esquina da mentira,
sangrado o peito,
coração na mão.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Queime o satélite


Queime o satélite
Belizario, outono 15.

Desliga o computador!
Desliga o telefone!
Para de lamber espelho!
Vem me abraçar, vem me reconhecer!
Como são frágeis os narcisos da rede social.
Gente que se cutuca toda pelo efêmero...
Vem cá minha flor!
Deixa eu te provar!
Te auto afirmes na minha boca!
A vida é feita de barro e de chão!
Vamos chafurdar,
Vem rolar comigo!
Vem me lambuzar!

Dilúvio


Dilúvio 
Belizario, outono 15.

Vi passar na correnteza... e me joguei!
Era um dilúvio!
Mas como todo fenômeno deste tipo,
o milagre veio.
Teci esta boniteza...a dois...a três...a quatro!
Saboreava cada pedacinho deste meu viver.
Na espiadinha das coisas simples,
fui fortalecendo a certeza,
de que amor é coisa a se fazer na caminhada...
Amadurecendo as entranhas da ansiedade.
O efêmero é imaturidade do tempo!
Ilusão de quem se alimenta de espelho!
Ser feliz não é ter coisa plena.
A intensidade vem e vai...
É preciso entender a vida como as manobras do vento...

II

Hilda Hilst no livro Júbilo, memória, noviciado da paixão

II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.