Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 29 de junho de 2010

Poema dos olhos da amada

Poema dos olhos da amada
Vinicius de Moraes no livro Nova Antologia Poética

Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus...

Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...

Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus.

Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Violeta, Dama-da-noite, cáctus..

Violeta, Dama-da-noite, cáctus..
Clarice Lispector, trecho do livro Água viva

A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer.

Dama-da-noite tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para quem ama o perigo. Só sai de noite com o seu cheiro tonteador. Dama-da-noite é silente. E também da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguém aguenta. Mas eu aguento porque amo o perigo.

Quanto à suculenta flor de cáctus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que faz a planta desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Instante-já

Instante-já
Clarice Lispector, trecho do livro Água Viva

Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o seu fluxo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

LXXXI

LXXXI
Pablo Neruda no livro Cem Sonetos de Amor

Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como o âmbar dormindo.

Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pela sombra comigo,
só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas,

enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho.

terça-feira, 22 de junho de 2010

***

***
Mario Quintana no livro Velório sem defunto

É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Apresentação

Apresentação
Cecília Meireles no livro Retrato natural

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Irmãos das almas...

Irmãos das almas...
João Cabral de Melo Neto em trecho do livro Morte e Vida Severina

- A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
- A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
- E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
- Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
- E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
- Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
- E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
- Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
- E o que guardava a emboscada,
irmãos das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
- Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
- E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
- Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
- Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
dos intervalos das pedras,
plantava palha.
- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
- Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todos nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
- E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
- Ao cemitério de Torres,
irmão das almas.
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
- E podeis ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
- Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
- E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
- Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
- Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
- Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
- Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Quando encontraram Guevara (Num assobio de Milonga...)

Quando encontraram Guevara (Num assobio de Milonga...)
João Sampaio no livro Para alguns iluminados

Quando encontraram El Che
Era tarde e eu mateava
Lá em cima a lua me espiava
No seu véu que se prolonga
Uma tristeza tão longa
Pateava na noite clara
E eu relembrava Guevara
No assobio de uma milonga...

Sentado sobre o pelego
Olhava ao longe a distância
E sentia a pampa fragrância
Da estrebaria do baio
No relincho desse raio
Vejo uma mãe triste e aflita
Campeando o filho solita
Em plena Praça de Maio!

E como se de repente
Achasse o elo perdido
Meu galpão enegrecido
Se enche de luz num clarão
O vento bufa no oitão
Numa espécie de marulho
E o céu da noite de julho
Orvalha de pranto o chão...

Solito eu sigo mateando
Pitando na noite clara
Pensando em Che Guevara
Que acharam na terra pura
E o povo em sua ternura
Com a mágoa mais caipora
Também se ajoelha e chora
No mais humilde dos templos
Orando em cima do exemplo
Do Che que se foi embora...

Por isso no parapeito
Sobre uma trama me aprumo
E enquanto pico um fumo
Pra tentear com mate-amargo
Converso irmão a lo largo
Com as nuvens do firmamento
Milongueio um argumento
E acho Guevara que a vida
É igual a folha caída
Que vai solita no vento...

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Cheiro de flor

Cheiro de flor
Belizario, outono 10.

Por essa, nem o maior dos poetas podia imaginar!
Ou plagiar em versos,
o amor reencarnado
que não pôde esperar.

Não tarda a infinitude
daqueles que se admiram...
que reconhecem o cheiro...
que se amam...não tarda não.

Lembro-te: foi como um vulcão!
Que adormecido esperava,
em terra cinzenta,
de malogros,
de falta de sintonias...vida amarga.

Jamais terás de minha boca,
o gosto de remorso,
dos que se remoem no por que tudo se acabou...
Não sou promíscuo com o adeus.

Sou como um pássaro...asas...
Tenho quatro patas,
de arco e flecha amolada,
todo avante,
e que não sabe esperar!

No meu peito,
nos meus braços,
levo um cheiro de flor...amada!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Desobedecendo (II)

Desobedecendo (II)
Henry David Thoreau, trecho do livro Desobedecendo

Em todos os Estados que conheço, a principal carência é a de uma vontade superior e determinada para com seu povo. Basta isso para extrair da Natureza "os grandes recursos", e também para sobrecarregar a Natureza para além de seus recursos; o homem acaba morrendo naturalmente nesse processo. Quando estamos mais interessados na cultura do que nas batalhas, e quando desejamos a clareza de espírito mais do que guloseimas, aí então os grandes recursos do mundo são solicitados e usados; o resultado, a produção rentável, não são escravos ou operários fabris, e sim homens - aquelas peças raras tais como heróis, santos, poetas, filósofos e redentores.
Em poucas palavras, poderíamos dizer que, assim como a calmaria do vento permite a formação de um monte de neve, a calmaria da verdade permite o surgimento de uma instituição. Mas logo o vento volta a bater em suas paredes e a desfaz.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O novo

O novo
Paulo Leminski no livro Caprichos e Relaxos

o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol

apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo

sábado, 5 de junho de 2010

Se tu viesses ver-me...

Se tu viesses ver-me
Florbela Espanca no livro Charneca em flor.

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca...o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte...os teus abraços...
Os teus beijos...a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Blefe de dor

Blefe de dor
Lúcio Xavier

Floresci assim...
Tal única
E imensa fronteira subjetiva.
Fiz eu de mim...
Qual serva púnica,
Por medo, permissiva.
Cerrei tua dor
Nos dentes.
Herdei teu cadafalso e cor,
Agonizada de correntes.
Cada passo teu,
Me fremia;
Assim de corpo ateu,
Me escondia;
Jurava vingança.
Mas...
Daquele breu,
Só sobrava covardia!
Criada nesse apuro,
Solitária,
Silenciosa,
Receava no escuro,
Ver a mortalha,
Que um dia
Teceste laboriosa.
Logo tu,
Que te fizeste dor
Todo dia,
Vem agora,
Em estado cru,
Me seduzir pela agonia.
Te espero
Esta noite...
Com ânsia de claridade;
Esquecerei toda vaidade
Que a dias te leguei.
E assim,
Lúcida,
Inventarei outro corpo,
Onde tu pasme lânguida
E percas toda vontade;
Pra que a mim triunfe
Tua morte,
Sem a mínima piedade!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Conselheiro

Conselheiro
Batatinha

Sou profissional do sofrimento
Professor do sentimento
Do amor fui artesão

Mestre do viver já fui chamado
Conselheiro do reinado
Cujo rei é o coração

Quebrei do peito a corrente
Que me prendia à tristeza
Dei nela um nó de serpente
Ela ficou sem defesa
Mas não fiquei mais contente
Nem ela menos acesa

Tristeza que prende a gente
Dói tanto quanto a que é presa
Abre meu peito por dentro
O amor entrou como um raio
Saí correndo do centro
Dentro do vento de maio

http://www.youtube.com/watch?v=MBJnTPOx0Xk&feature=player_embedded

terça-feira, 1 de junho de 2010

Efêmero esquizofrênico

Efêmero esquizofrênico
Belizario, inverno 09

O que é a experiência?
O que é a autonomia?
Pra mim a efemeridade
transformou-se numa esquizofrenia!
Entram no amor querendo sair...
Não se luta mais pelos alguéns...
Luta-se pela solidão!
A esquizofrenia fabrica infelicidade.
Assim como o sexo é potência,
o homem másculo,
a mulher gostosa,
o amor...
virou plástico!!