Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sábado, 22 de janeiro de 2011

XII

XII
Manoel de Barros no livro O livro das ignorãças

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Bendito carteiro!

Bendito carteiro!
Belizario, verão 11.


Bendito carteiro!
Que trás meus livros...
sempre sorridente, na mesma hora de sempre!
Nessa batalha com o digital,
o papel ganhou pra mim...
Bendito carteiro,
pássaro alado...
que de longe trás as inspirações sem fim.
Fico imaginando...
estes livros passeando de barco pelos rios,
encontrando Sidartha, Thiago...
Andando de carro de boi com Josué, Amado...
Sobrevoando e tramando horizontes com Neruda...
no pampa de Silveira...nas ruas de pedra centenárias de Gullar...
e chegando nas minhas mãos...cheirosos...aventurosos...
cheios de carinho...Bendito carteiro!
Muito obrigado!
Ah, como são lindos...
e viva Manoel de Barros!

Lição do pinto

Lição do pinto
Patativa do Assaré no livro Ispinho e Fulô

Versos recitados pelo autor em um comício em favor da anistia.


Vamos meu irmão,
A grande lição
Vamos aprender,
É belo o instinto
Do pequeno pinto
Antes de nascer.

O pinto dentro do ovo
Está ensinando ao povo
Que é preciso trabalhar,
Bate o bico, bate o bico
Bate o bico tico tico
Pra poder se libertar.

Vamos minha gente,
Vamos para a frente
Arrastando a cruz
Atrás da verdade,
Da fraternidade
Que pregou Jesus.

O pinto prisioneiro
Pra sair do cativeiro
Vive bastante a lutar,
Bate o bico, bate o bico,
Bate o bico tico tico
Pra poder se libertar.

Se direito temos,
Todos nós queremos,
Liberdade e paz,
No direito humano
Não existe engano,
Todos são iguais.

O pinto dentro do ovo
Aspirando um mundo novo
Não deixa de beliscar
Bate o bico tico tico
Bate o bico, bate o bico,
Pra poder se libertar.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Vigiando o oco do tempo

Vigiando o oco do tempo
Waly Salomão no livro Algaravias

Deslizo,
oculto aqui,
vigiando o oco do tempo.
Espaço ermo, parado.
Nada acontece. Nada parece acontecer.
Mas algo flui, o irremediável,
queimando todas as pontes de regresso.
Todo o passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.
A velha senhora viajada,
detentora de recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.
Viver em mudança.
O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pêlo felpudo das aranhas caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena um homem.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sagitarianos...

Sagitarianos...
Belizario, verão 11.

Não queiram ver um Sagitariano com raiva...
não queiram ver!
Atravesse a rua, vai por mim, não vale a pena.
Tens uns tipos então...impossíveis!
Costumam ter sobrancelhas juntas, grudadas, parecem taturanas!
É isso!
Essa metade homem, metade cavalo do Sagitariano...é metade bicho!
Vai entender esse tipo de gente...ou de animal...
sempre insatisfeita!
Mania de estar com o olhar sempre longe...dificilmente vive o presente.
Na verdade eles queriam ser como os seus primos alados, os Pegasus.
Queriam voar!
Mas não podem, não tem asas...pobrezinhos...
daí tanta raiva quando são contrariados!
Tá certo que podem ser na maioria do tempo bem amáveis...
mas não queiram os ver irritados!
Não queiram ver!
É patada para todo o lado!
Ouvi dizer por aí que este tipo de gente...ou de bicho...anda raro.
Essa metade homem, metade cavalo do Sagitariano,
é água transbordante...
é flor da pele...
é espontaneidade e utopia...
e ainda tem aqueles que escrevem poesia...esses são casos perdidos...
se os ver, vire a esquina!
Existem poucos por aí...e andam escondidos...
é tempo de vê-los de cabeça baixa ou com a cara nos livros...
andam bem estranhos...
Tem pessoas que se dão bem com esse tipo de gente...ou de bicho...
Essa metade homem, metade cavalo do Sagitariano...
Jamais coloques neles, rédeas ou tapa-olhos...
deixe-os livres com a fuça nas estrelas...
essa mania de arco e flecha apontando pro infinito,
é bem bonitinha, eu conheço, é sincero amor,
mesmo metade homem, metade cavalo...
ah, como é difícil esse povinho de Sagitário.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

No Banho

No Banho
Lobo da Costa no livro Dispersas

Na fresca praia das belas
- Do mar o rosado vaso, -
Banhavam-se umas donzelas,
Quando passei por acaso.

Batia a lua nas águas,
Com poético clarão,
E as vagas, lambendo as fráguas,
Encantavam a soi'dão!

Em terra, a velha, sentada...
A pobre velha viúva,
Riscava a areia molhada
Co'a ponta do guarda-chuva.

Os gritos, as risadinhas,
Das lindas moças, no banho,
Atraem as vistas minhas,
E chego, apesar de estranho.

E caio n'agua... a velhota,
Não me viu... toma rapé,
E apenas diz em risota:
- "Cuidado com o jacaré!"

Afinal, a mais bonita,
Filei mesmo por um pé,
Enquanto a velhinha grita
- "Cuidado com o jacaré!"

Que gozo estranho! que dita!
A onda nos embalava,
Ora a terra facilita,
Ora o mar nos carregava!

E a velha sempre gritando:
- "Cuidado com o jacaré!"
E nós, nas ondas, rolando...
E a velha a tomar rapé...

Porto Alegre, 1885.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O andarilho

O andarilho
Manoel de Barros no Livro sobre nada

Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Perdi

Perdi
Belizario, verão 11.

Foi por um instante...
Mas pensei que seria daqueles sortudos,
que depois de uma separação,
se apaixonam de novo pela mesma mulher...
ganham outra chance.
Ah, o poema já estava escrito na minha cabeça...

Mais uma vez errei,
e mais outra chance se foi.
Achei que poderia...
que conseguiria reinventar o amor...
em mim...
em ti...
perdi.

Falavas em juntar cacos,
estou aqui a procurar meus restos...
como diria o poeta: fico no fim que mereço!
E como mereço...e como mereci.

Contraditório mais uma vez me fiz...
fui promíscuo com o adeus.
Perdi.

Tempo de amor

Tempo de amor
Vinícius de Moraes

Ah, bem melhor seria
Poder viver em paz
Sem ter que sofrer
Sem ter que chorar
Sem ter que querer
Sem ter que se dar

Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar

Ah, mundo enganador
Paz não quer mais dizer amor

Ah, não existe coisa mais triste que ter paz
E se arrepender, e se conformar
E se proteger de um amor a mais

O tempo de amor
É tempo de dor
O tempo de paz
Não faz nem desfaz

Ah, que não seja meu
O mundo onde o amor morreu

Lava e leva

Lava e leva
Belizario, primavera 09.

Meus amores se desfazem entre minhas mãos.
São gotas d'água, são grãos de areia.
Pegasus a bater asas nos céus.
Pássaros que migram para novas terras.
São como pé de vento, pé de chuva...
lava e leva.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O teu mais velho canto

O teu mais velho canto
Ferreira Gullar trecho de A Fala no livro A Luta Corporal

O teu mais velho canto,
arrastado com sol, varrido
no coração das épocas,
eu o recolho, agora, de entre estas pedras, queimado.

Tua boca, real,
clareia os campos que perdemos.
Eu jazo detrás da casa, aonde já ninguém vai
(onde a mitologia sopra, perdida dos homens,
entre flores pobres).

sábado, 8 de janeiro de 2011

O enterrado vivo

O enterrado vivo
Carlos Drummond de Andrade no livro José Fazendeiro do Ar Novos Poemas

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O apito do trem

O apito do trem
Belizario, verão 11.

Amanhecera novamente abafado. A cidade parecia de propósito envolver os habitantes naquela sensação de desespero. Ela acordara novamente com a garganta apertada... o peito também. O bairro carregava aquele sentimento de desconfiança, mas ao mesmo tempo de fascínio com o apito do trem. Contavam que o apito tinha o efeito hipnótico de atrair os desesperados, os entristecidos... para os trilhos, para baixo do trem. Levantara, não lavara o rosto. Com as janelas fechadas olhava a xícara de café... café nada, qualquer pó preto industrial chamado de café... minguado... girava a colher devagar... pensava no antigo companheiro que havia partido nos braços de outra mulher... mais jovem... no filho que vagara noite e dia pelas ruas podres do centro da cidade... onde dormira...se deitara...não o recebia mais em sua casa, já cansara de ser roubada... naquela manhã fazia exatamente um mês que ele havia partido. O pão seco não descia na garganta...fome já não tinha a muito tempo. Os trilhos e suas histórias não saiam da cabeça... tomou um banho... colocou o vestido que a muitos anos já não usava... arrumou os cabelos... maquiou-se... o calor abafado a fazia suar...a maquiagem borrava – Que merda de cidade! Tomou um copo d’água. Sentou na cadeira que compunha os poucos móveis da sala... de uma fresta pequena da janela enxergava os raios de sol. De frente a porta, esperava. De longe, a locomotiva sua sinfonia executava... se levantou, pegou a chave...abriu, fechou a porta. Era o último canto que faltava...a profecia do bairro se efetivava.

Meu tempo é ontem

Meu tempo é ontem
Belizario, verão 11.

Meu telhado é de vidro.
Girei o braço, a pedra resvalou... em mil pedaços me vi.
Em Satolep está nublado...
Na beira da lagoa o vento carrega os pequenos frutos das figueiras...
Na beira do mar o pequeno cusco está perdido....
Meu tempo é ontem...cansei de mim.