Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Gênesis

Gênesis
Barbosa Lessa trechos do livro Rodeio dos Ventos

A criação do céu e da terra: No princípio criou Nhanderuvuçu a atração das coisas, o Anhang dos anhangs, que era a força de Si mesmo...E, para que as coisas vivessem, criou Nhanderuvuçu o Kayuá, o dom da palavra; pois uma coisa só existe quando há um nome para chamá-la.
E então pôde Nhanderuvuçu dizer: "Haja ervas, árvores, cipós; haja pássaros no ar, peixes na água, bichos na face da tera". E cada anhang e cada forma, unidos, resultaram no nome dessas coisas.
E havia só um Tempo e uma só Luz, ambos eternos.

O Êxodo: Mas desde então perderam os homens o dom do Kayuá, a Língua Una, e se puseram a buscar inutilmente a verdade das palavras. Foi o tempo da Incerteza...

Mandamentos de Nhanderuvuçu: ...Respeitarás como bens sagrados o ar e a água e a terra, que de minhas mãos nasceram para a harmonia de um todo e não para o gozo de tua exclusiva ventura.
Honrarás teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na face da terra, e igualmente honrarás teus avós antepassados, para que se prolongue o teu anhang na infinita eternidade....
...Suportarás com dignidade a dor e o sobressalto, pois tudo é passageira inquietação de tua forma.
Não terás chefe ou senhor, pois a única força dos homens se afirma no Kayuá.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Objeto de amar

Objeto de amar
Adélia Prado em Antologia

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

XXII

XXII
Hilda Hilst em trecho do Cantares de perda e predileção

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho

Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sanguessuga

Sanguessuga
Luane Alves

Passo a passo
Eu caminho,
Fugindo de você,
Me guiando
Pro inferno
Longe daqui.
Ou será que o inferno é junto a ti?
Se não for,
Por que essa chama que não se apaga?
Que me aquece,
Fogo que arde em mim,
Sanguessuga,
Levou minha paz,
Quebrou o frasco
Do nosso amor.
A última gota que restou
Hoje se derrama,
Desfila,
Foge pelo canto do meu olho,
Desenha minha cara,
Sanguessuga do meu calor.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Para Lobo da Costa

Para Lobo da Costa
Rodolpho Xavier na A Alvorada

Juntos andavam eles como irmãos
Ao lado da alma o corpo penitente
Sempre juntos lutando heroicamente
Contra o destino e preconceitos vãos.
Se na alma havia sentimentos sãos
Em verdade era o corpo diferente
Uma fundia-se à luz eternamente
O outro ficou no mundo sem seus desvãos.
Subindo a alma volta em resplendores
Transforma-se o arco-íris multicores
Em chuvas, sóis, em astros e poesia.
Não vai ao corpo as regiões celestes
E só na tumba fica, entre ciprestes
Por entre as larvas e entre a terra fria.


Agradecimento carinhoso ao amigo Lúcio Xavier, poeta e historiador, que estudou a belíssima trajetória de Rodolpho Xavier, escritor e militante negro dos finais do XIX, início dos XX. Ver: http://www.overmundo.com.br/overblog/rodolpho-xavier-negro-flaneur-e-memorialista

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

La casada infiel

La casada infiel
Frederico García Lorca no livro Romancero Gitano

A Lydia Cabrera y a su Negrita


Y que yo me la lleve al río
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido.
Fue la noche de Santiago
y casi por compromiso.
Se apagaron los faroles
y se encendieron los grillos.
En las últimas esquinas
toqué sus pechos dormidos,
y se me abrieron de pronto
como ramos de jacintos.
El almidón de su enagua me
sonaba en el oído,
como una pieza de seda
rasgada por diez cuchillos
Sin luz de plata en sus copas
los árboles han crecido,
y un horizonte de perros
ladra muy lejos del río.

Pasadas las zarzamoras,
los juncos y los espinos,
bajo su mata de pelo
hice un hoyo sobre el limo.
Yo me quité la corbata.
Ella se quitó el vestido.
Yo el cinturón con revólver
Ella sus cuatro corpiños.
Ni nardos ni caracolas
tienen el cutis tan fino,
ni los cristales con luna
relumbran con ese brillo.
Sus muslos se me escapaban
como peces sorprendidos,
la mitad llenos de lumbre,
la mitad llenos de frío.
Aquella noche corrí
el mejor de los caminos,
montado en potra de nácar
sin bridas y sin estribos.
No quiero decir, por hombre,
las cosas que ella me dijo.
La luz del entendimiento
me hace ser muy comedido.
Sucia de besos y arena,
yo me la lleve del río.
Con el aire se batían las
espadas de los lirios.

Me porté como quien soy.
Como un gitano legítimo.
La regalé un costurero
grande de raso pajizo,
y no quise enamorarme
porque teniendo marido
me dijo que era mozuela
cuando la llevaba al río.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Corridinho

Corridinho
Adélia Prado no livro Poesia Reunida

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.

O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Obdulio

Obdulio
Eduardo Galeano no Livro Futebol ao Sol e à Sombra

Eu era menino e peladeiro, e como
todos os uruguaios estava grudado no
rádio, escutando a final da Copa do
Mundo. Quando a voz de Carlos Solé
transmitiu a triste notícia do gol
brasileiro, minha alma caiu no chão.
Recorri então ao mais poderoso de meus
amigos. Prometi a Deus uma quantidade
de sacrifícios, se Ele aparecesse no
Maracanã e virasse o jogo.
Nunca consegui recordar as muitas
coisas que prometi, e por isso nunca
pude cumpri-las. Além disso, a vitória
do Uruguai diante da maior multidão
jamais reunida numa partida de futebol
tinha sido sem dúvida um milagre, mas o
milagre foi acima de tudo obra de um
mortal de carne e osso chamado Obdulio
Varela. Obdulio tinha esfriado a
partida, quando a avalanche nos caía em
cima, e depois carregou toda a equipe
nos ombros e com pura coragem impeliu-a
contra ventos e marés.
No final daquela jornada, os
jornalistas acossaram o herói. E ele
não bateu no peito proclamando somos os
melhores e que não há quem possa com a
garra nacional:
- Foi casualidade - murmurou
Obdulio, abanando a cabeça.
E quando quiseram fotografá-lo,
virou de costas.
Passou aquela noite bebendo
cerveja, de bar em bar, abraçado aos
vencidos, nos balcões do Rio de
Janeiro. Os brasileiros choravam.
Ninguém o reconheceu. No dia seguinte,
fugiu da multidão que o esperava no
aeroporto de Montevidéu, onde seu nome
brilhava num enorme letreiro luminoso.
No meio da euforia, escapuliu
disfarçado de Humphrey Bogart, com um
chapéu metido até o nariz e um
impermeável de gola levantada.
Em recompensa pela façanha, os
dirigentes do futebol uruguaio deram a
si mesmos medalhas de ouro. Aos
jogadores, deram medalhas de prata e
algum dinheiro. O prêmio que Obdulio
recebeu deu para comprar um Ford modelo
31, que foi roubado naquela mesma
semana.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tristezas da lua

Tristezas da lua
Charles Baudelaire no livro Flores do mal

Divaga em meio à noite a lua preguiçosa;
Como uma bela, entre coxins e devaneios,
Que afaga com a mão discreta e vaporosa,
Antes de adormecer, o contorno dos seios.

No dorso de cetim das tenras avalanchas,
Morrendo, ela se entrega a longos estertores,
E os olhos vai pousando sobre as níveas manchas
Que no azul desabrocham como estranhas flores.

Se às vezes neste globo, ébria de ócio e prazer,
Deixa ela uma furtiva lágrima escorrer,
Um poeta caridoso, ao sono pouco afeito,

No côncavo das mãos toma essa gota rala,
De irisados reflexos como um grão de opala,
E bem longe do sol a acolhe no seu peito.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Pátria de chuteiras

Pátria de chuteiras
Belizario, inverno 10.

África do sul,
terra rememorada nestes tempos de bola...
Soweto...tantos tombados...sangue juvenil!
Brasil. Pátria de chuteiras...ruas e casas enfeitadas...euforias mil!
Não desceu do ônibus...que carregava o país todo dentro...
não pisou em terra de negro...decidiu e não viu.
Desfilou entre campos de golfe,
de suas vestes o capital emergiu como cartão postal!
Pátria de chuteiras incapaz de reconhecer um negro olhar calejado...
Tao parecido como o seu...esquecido como tanto quis o general,
que emergiu em 31 de março, 1º de abril.
Não abraçou Mandela, não acendeu vela a Biko.
Preferiu uma grama artificial...não sujou sapato com terra vermelha,
aleitou o passado tirano, endossou o sono do rico.
Enfeitou a rua...chorou porque não ganhou...e o q sobrou?!
Uma Holanda, bôer “apartheideana”, aplaudida...
uma Fifa corrupta, das mais viris capitalistas...
Teixeiras, especuladores, dinheiro encardido...
que chance se perdeu,
de estreitar o laço oprimido,
e poder cantar pelas ruas de Soweto, de qualquer viela do meu Brasil:
agora chegou tua vez burguês tirano!
Não mais bateu na trave,
do gol libertário,
fiz meu fuzil!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sem título - Lobo!

Sem título - Lobo!
Lobo da Costa no livro Auras do Sul

Enquanto o pobre operário
Do sono o espectro afugenta,
- Rasgando um porvir aos filhos
Aos golpes da ferramenta;

Enquanto – cortando os mares
Batidos pelas procelas,
O nauta sonha o futuro
Ao surdo bramir das velas;

Enquanto o triste soldado,
Prostado junto à espingarda,
Vela da pátria o sossego...
Sentindo orvalhos na farda...

Enquanto em calma vigília
Pensa o sábio – noite fora
Sonhando o porvir do povo
Sem mesmo dormir um’hora;

Enquanto em fria senzala,
Sobre a trapeira atirado,
Sonha o escravo a liberdade
Como um cão acorrentado...

O rico, o nobre, que nunca
Teve da glória a emoção,
Dorme... e entre sonhos murmura:
Que tolos! Que tolos são!

domingo, 10 de outubro de 2010

Todas as vidas

Todas as vidas
Cora Coralina no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Desejos vãos

Desejos vãos
Florbela Espanca no livro Sonetos

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz imensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até a morte!

Mas o Mar também chora de tristeza ...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras ... essas ... pisa-as toda a gente!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ainda ontem...

Ainda ontem...
Belizario, outono 05.

Ainda ontem um sujeito passou, bateu nas costas e disse:
A vida é feita pra sonhar, e os amigos pra passar.

Ainda ontem, outro doido passou, olhou nos meus olhos e disse:
Mesmo que fujas pra outro lugar, teu coração ainda vai ficar por lá.

E eu cansado de olhos e de reclamações...
Peguei as malas...fui morar em outro lugar.

Mas não, não adianta fugir, não adianta chorar...
que onde for, a mesma vida vai te esperar.

Ainda ontem encontrei amigos, nas esquinas que fiz perder sentido.
Eles não estavam mais lá, mas ainda insistia em reencontrar.

E os bares, que outrora me faziam sorrir, poetar e cantar...
Hoje são becos escuros de solitários a procura de um par.

Mas sim, os amigos vão partir, as ruas vão entortar...
e na estrada vais ter que te reinventar.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Gostosuras

Gostosuras
Mario Quintana no livro Preparativos de viagem

Tua saudade tem gosto de amora.
O teu beijo tem gosto de pitanga.

sábado, 2 de outubro de 2010

Finda

Finda
Lúcio Xavier

Finda, tua cólera de indomadas,
Corre na profusão de um tempo,
E açoita a longitude cerrada,
Qual verbo que te estanca, ainda.
Por isso, finda,
No horror da flor cortada,
E tua pele rija saberá, retida,
Se o amor, que te põe vencida,
Não acata mais a tua dor velada.
Morre, em mim, tua canção de vida,
Que de asas rotas se achará traída.
Grita, corta, sangra em teu altar temido
Cuspindo à cara dessa vã mentira,
Toda dor desse ateu gemido,
Pra que renasça seca, tua letal ferida.