Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Irmãos das almas...

Irmãos das almas...
João Cabral de Melo Neto em trecho do livro Morte e Vida Severina

- A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
- A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
- E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
- Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
- E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
- Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
- E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
- Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
- E o que guardava a emboscada,
irmãos das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
- Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
- E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
- Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
- Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
dos intervalos das pedras,
plantava palha.
- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
- Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todos nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
- E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
- Ao cemitério de Torres,
irmão das almas.
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
- E podeis ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
- Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
- E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
- Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
- Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
- Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
- Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

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