Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sexta-feira, 30 de abril de 2010

De alma em alma

De alma em alma
Cruz e Souza no livro Últimos Sonetos

Tu andas de alma em alma errando, errando,
Como de santuário em santuário.
És o secreto e místico templário
As almas, em silêncio, contemplando.

Não sei que de harpas há em ti vibrando.
Que sons de peregrino estradivário,
Que lembras reverências de sacrário
E de vozes celestes murmurando.

Mas sei que de alma em alma andas perdido,
Atrás de um belo mundo indefinido
De Silêncio, de Amor, de Maravilha.

Vai! Sonhador das nobres reverências!
A alma da Fé tem dessas florescências,
Mesmo da Morte ressucita e brilha!

Liberdade

Liberdade
Fernando Pessoa no livro Poemas Escolhidos

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa....

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha quer não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

E sobre o casamento, mestre?

E sobre o casamento, mestre?
Khalil Gibran no livro O Profeta

Então, Almira falou novamente e disse? E sobre o Casamento, mestre?
E ele respondeu, dizendo:
Vós nascestes juntos e juntos permanecereis para sempre.
Estareis juntos quando as brancas asas da morte acabarem com os vossos dias.
Sim, estareis juntos mesmo na silenciosa memória de Deus.
Mas haverá lacunas em vossa união.
E deixem que os ventos dos céus dancem entre vós.
Amai um ao outro, mas não façais uma ligação de amor.
Deixai que seja como um mar em movimento entre as praias de vossas almas.
Enchei o cálice um do outro, mas não bebei do cálice do outro.
Dai um ao outro do vosso pão, mas não comei do mesmo pedaço.
Cantai e dançai juntos e sejais alegres, mas deixai que cada um fique sozinho.
Assim como as cordas de uma lira são sozinhas, apesar de vibrarem com a mesma música.
Dai vossos corações, mas não para que o outro os guarde.
Pois apenas a mão da Vida pode comer vossos corações.
E ficai juntos, mas não juntos demais:
Pois os pilares do templo ficam separados,
E o carvalho e o cipreste não crescem na sombra um do outro.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Por Quien Merece Amor

Por Quien Merece Amor
Silvio Rodriguez

¿Te molesta mi amor?
Mi amor de juventud,
y mi amor es un arte
en virtud.

¿Te molesta mi amor?
Mi amor sin antifaz,
y mi amor es un arte
de paz.

Mi amor es mi prenda encantada,
es mi extensa morada,
es mi espacio sin fin.
Mi amor no precisa fronteras;
como la primavera,
no prefiere jardín.

Mi amor no es amor de mercado,
porque un amor sangrado
no es amor de lucrar.
Mi amor es todo cuanto tengo;
si lo niego o lo vendo,
¿para qué respirar?

¿Te molesta mi amor?
Mi amor de humanidad,
y mi amor es un arte
en su edad.

¿Te molesta mi amor?
Mi amor de surtidor,
y mi amor es un arte
mayor.

Mi amor no es amor de uno solo,
sino alma de todo
lo que urge sanar.
Mi amor es un amor de abajo
que el devenir me trajo
para hacerlo empinar.

Mi amor, el más enamorado,
es del más olvidado
en su antiguo dolor.
Mi amor abre pecho a la muerte
y despeña su suerte
por un tiempo mejor.
Mi amor, este amor aguerrido,
es un sol encendido,
por quién merece amor.


http://www.youtube.com/watch?v=QB4fjWfZrGQ&feature=player_embedded

Os ditadores

Os ditadores
Pablo Neruda no livro Canto Geral

Ficou um aroma entre os canaviais:
uma mescla de sangue e corpo, uma penetrante
pétala nauseabunda.
Entre os coqueiros os túmulos estão cheios
de ossos demolidos, de estertores calados.
O delicado sátrapa conversa
com taças, pescoços e cordões de ouro.
O pequeno palácio brilha como um relógio
e os rápidos risos enluvados
atravessam às vezes os corredores
e se reúnem às vozes mortas
e às bocas azuis frescamente enterradas.
O pranto está escondido como uma planta
cuja semente cai sem cessar sobre o chão
e faz crescer sem luz suas grandes folhas cegas.
O ódio se formou escama por escama,
golpe por golpe, na água terrível do pântano,
como um focinho cheio de lodo e silêncio.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Confesso

Confesso
Belizario, outono 10

1....
..2....
....3...
......4...!
Confesso!
Meu amor se faz multiplicado!

Leminski

Sem titulo
Paulo Leminski no livro Distraídos Venceremos

ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa

Clandestino

Clandestino
Lúcio Xavier

Eu quero mais é terminar com isso...!
Chega dessa coisa,
De ficar em fila, pra poder te olhar no olho.
O drama pode ser o mesmo, nem fala!
Mas tô me precisando já faz tempo.
Nada pessoal, só não me abaixo mais
Pra ficar juntando caco no meio de ferro torcido!
Ainda é tempo de olhar por cima do muro... quebrar um galho,
Vir arrastando a bolsa pela alça,
Manchar o assoalho,
Limpar na calça...
Sempre estive, mesmo, meio perdido naquela cidade;
Parava na ponte,
Olhava,
Chorava,
Chutava a pedra e mandava ela no meu lugar...
“Vai que ainda tem uma mão agarrada na minha gola”.
Seca logo essa caneca,
Ou fica fora da esmola!
Agora, só vou passar de vez em quando,
Prometo que não paro mais na tua porta!
Pode dormir,
Que eu ganhei uma cidade vermelha.
Não me escreve, por favor!
A partir de hoje, eu que vou fingir
Que a luz da rua tá quebrada!

terça-feira, 27 de abril de 2010

Pequeno Poema Didático

Pequeno Poema Didático
Mario Quintana no livro Apontamentos de História Sobrenatural

O tempo é indivisível. Dize
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas...

E todos os encontros são adeuses!

Um sorriso

Um sorriso
Ferreira Gullar no livro Na Vertigem do dia

Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas

quando
com minha acesa antorcha e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
se não colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Lo que queremos...

Lo que queremos...
Pedro Salinas no livro Poetas Españoles Contemporáneos Breve Antologia

Lo que queremos nos quiere
aunque no quiera querernos.
Nos dice que no y que no,
pero hay que seguir queriéndolo:
porque él no tiene un revés,
quien lo dice no lo sabe,
y siguiendo en el querer
los dos se lo encontraremos.
Hoy, mañana, junto al nunca,
cuando parece imposible
ya,
nos responderá en lo amado,
como un soplo imperceptible,
el amor
mismo con que lo adoramos.
Aunque estén contra nosotros
el aire y la sociedad,
las pruebas y el no y el tiempo,
hay que querer sin dejarlo,
querer y seguir queriendo.
Sobre todo en la alta noche
cuando el suelo, ese retorno
al ser desnudo y primero,
rompe desde las estrellas
las voluntades de paso,
y el querer siente, asombrado,
que ganó lo que queria,
que le quieren sin querer,
a fuerza de estar queriendo.
Y aunque no nos dé su cuerpo,
la amada, ni su presencia,
aunque se finja otro amor
un estar en otra parte,
este fervor infinito
contra el no querer, querer
la rendirá, bese o no.
Y en la oscura noche,
cuando
desde otra orilla del mundo,
la bese el amor remoto,
se la entrará por el alma,
como un frío o una sombra
la evidencia de ser ya
de aquel que la está queriendo.

Soneto do Corifeu

Soneto do Corifeu
Vinicius de Moraes no livro Nova Antologia Poética

São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

domingo, 25 de abril de 2010

Gosto doce da rapadura

Gosto doce da rapadura
Belizario, primavera 08.

Se achas que não te vejo,
vejo sim!
Ser gente para ti não foi efeito.
O feito era aquele dedo,
que te apontava pra rua!
Tu, uma espécie de gente sem morada...mentira!
A rua é a sua présa!
Mas no bar tu não pôde entrar.
Nem com dinheiro na mão?!
Achavas que sim...foi não...
Só querias o gosto doce da rapadura,
herdada pela présa...na morada!

Desobedecendo

Desobedecendo
Henry David Thoreau, trecho do livro Desobedecendo

Hoje em dia quase todos os chamados melhoramentos feitos pelo homem, tais como a construção de casas e a derrubada das florestas e de todas as árvores grandes, simplesmente deformam a paisagem e fazem com que ela fique mais e mais domesticada e sem valor.
Quem me dera um povo que preferisse pôr fogo nas cercas e deixar de pé as florestas!

sábado, 24 de abril de 2010

Fruta estranha

Fruta estranha
Poesia de Abel Meeropol, musicada por Billie Holiday.

Árvores do sul produzem uma fruta estranha,
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros nadando na brisa do sul,
Fruta estranha penduradas nos álamos.

Pastoril cena do valente sul,
Os olhos inchados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresca,
Depois o repentino cheiro de carne queimada.

Aqui está a fruta para os corvos arrancarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair,
Aqui está a estranha e amarga colheita.


http://www.youtube.com/watch?v=MVxVa3D11n4&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=h4ZyuULy9zs&feature=related

Muitos são pela ordem

Muitos são pela ordem
Bertolt Brecht no livro Poemas e Canções

Muitos são pela ordem. Na hora de comer
estendem sobre a mesa uma toalha, quando tem, ou removem
os farelos do prato com a mão,
quando a mão não está muito cansada.
A mesa deles, porém, está, como a casa deles,
num mundo que na imundice vai gradualmente afundando.
Ah, limpo o armário deles há de estar! Mas nos subúrbios
acha-se a fábrica, o moinho de ossos,
a nora ensanguentada da ganância...Ah, de que serve,
com lama até o pescoço, conservar
limpas as unhas nas pontas dos dedos?

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Eu preciso viajar

Eu preciso viajar
Lila Ripoll no livro Mãos Postas

Eu preciso sair. Andar. Viajar um pouco.
Necessito fazer uma cura de alma.
Aqui, meu coração, por certo (um pobre louco!)
perderá, por completo a razão e a calma.
Eu preciso viajar. Para onde? Não sei.
Qualquer vento me serve. Eu não tenho destino.
Sou um barco sem vela, que viaja sem lei.
E de longe dirão: - "Quem será o menino
que atirou para o mar, esse barco vazio?
Vai quebrar. Vai partir. Não tem leme, nem vela,
e as águas do mar, não são águas do rio..."

Ninguém sabe o que diz. Todos erram, pensando.
O meu barco está cheio, pesado e sombrio,
pois é meu coração que ele vai carregando.
As tristezas que leva! Não quero pensar.
São segredos que guardo, que escondo comigo:
Os fantasmas que eu amo e desejo matar.
Qualquer porto que encontre será meu abrigo.
Qualquer vento me serve. Eu preciso é viajar!

Memórias de noites embriagadas

Memórias de noites embriagadas
Belizario, inverno 05.

Aqueles devem estar louquinhos a essa hora!
É noite,
é sábado,
inverno,
rua afora.
Aquelas pernas cambaleando,
ou marcando passos de doidas caminhadas.
E as ruas, com paralelepípedos úmidos,
fazendo o pano de fundo,
para no céu a lua dar gargalhadas.
Aquelas cabeças chapadas...
e vinho!
Cantam agitando até os tristinhos.
E eu aqui mudo pensando,
irônico, sorrindo:
- Pior, amanhã é domingo!

Janela sobre a memória (II)

Janela sobre a memória (II)
Eduardo Galeano no livro As palavras andantes

Um refúgio?
Uma barriga?
Um abrigo onde se esconder quando estiver se afogando na chuva, ou sendo quebrado pelo frio, ou sendo revirado pelo vento?
Temos um esplêndido passado pela frente?
Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um porto de partida.

Pelas grades do claustro

Pelas grades do claustro
Lobo da Costa no livro Auras do Sul

Meu leito fica ao vão de uma janela,
Num dos recantos frios do hospital;
E bem fronteiro a ele, o ninho d'Ela,
Cercado pelas murtas do quintal.

O Sol vai a baixar...mas quando a noite
Ilumina as vidraças desse Éden,
E vem de manso o vento em brando açoite
Trazer-me uns longes de frescor d'além;

O arruído sequer, não sinto ao menos,
Das criancinhas loiras do terraço,
Nem a voz do piano em doces trenos,
Movida por seu trêmulo compasso...

Pergunto a mim, às sombras desta cela,
A tudo que me cerca, a tudo, enfim:
- Meu coração...minh'alma, onde está ela
Que não se lembra mais de mim...de mim?

E as sombras passam mudas, na indolência,
E de funérea cor cobre-se o céu:
Mas fala-me no seio a consciência:
- Pois tu não sabes, doido? - Ela morreu!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Poemas antigos, poetas novos

Poemas antigos, poetas novos
Belizario, inverno 09

Madrugado,
insatisfeito e cedo,
nos livros tentei me inspirar.
Poemas antigos, poetas novos, não hão de bastar.
Na rede que não dá peixe,
até a página expirar,
meu flerte não dá certo.
Poemas antigos, poetas novos, não hão de bastar.
Tento esta escrita dura,
por vezes desafinada,
mas que apela ao amor.
Amor desatino, amor florido.
Poemas antigos, poetas novos, não hão de bastar.
Se teu sorriso
dessa boca mágica e fina surgir,
e de um beijo teu eu gozar,
poemas antigos, poetas novos, tanto faz,
sei que já bastam, me inspiram a dançar!
Vem comigo!
Além disso, posso cantar!
É noite de lua cheia,
poetas rebeldes como eu,
só tem um sentido,
eterno verso a bradar.
Ao chão de estrelas estendido:
te amar, te amar!

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Lanceiros Negros

Lanceiros Negros
De Oliveira Silveira no livro Pêlo Escuro


Carga de lança - diante do inimigo
a noite
uma noite pontuda
de ir rasgando entranhas
como rasgava roupas
pele
carne
tudo
a sanha
de não velhos açoites.

Carga de lança - no campo da luta
a noite
negra e pontiaguda.
Sombras noturnas rolam no horizonte,
há nuvens de sangue no chão.
E cada lanceiro estendido
é uma noite pisoteada
- roupas e entranhas rasgadas -
noite que ficou
para sempre libertada.

Carga de lança - noite alforriada.

Eu detesto coca light

Eu detesto coca light
De Zeca Baleiro e Chico César

Eu detesto George Bush desde a guerra do Kwait
Não quero que tu te vás mas se tu queres ir vai-te
Quero adoçar minha sina que viver tá muito diet
Danação é cocaína mesmo quando chamam bright
Gosto de você menina mas detesto coca light

Gosto de sair à noite de tomar um biri night
Jurubeba tubaína Johnny Walker Black White
Me afogo na cangibrina caio no tatibitáti
Tomo cinco ou seis salinas feito fosse chocolate
Engulo até gasolina mas detesto coca light

Fazem da boate igreja da igreja fazem boate
Poem veneno na comida cicuta no abacate
Eu cuido da minha vida não sou boi que vai pra o abate
Podem cortar minha crina podem partir pra o ataque
Podem me esperar na esquina mas detesto coca light

Deus é o juiz do mundo ele apita o nosso embate
Nem Carlos Eugênio Simon nem José Roberto Wright
A partida não termina prorrogação e penálti
A torcida feminina dá o molho ao combate
Aprendo o que a vida ensina mas detesto coca light

Tolerância zero fome zero coca zero
No quartel do mundo eu sou o recruta zero
Quero quero tanta coisa
E só me dão o que não quero
(A patroa agradece!...)

terça-feira, 20 de abril de 2010

Transgresiones

Transgresiones
Mario Benedetti no livro Preguntas al Azar

Todo mandato es minucioso
y cruel
me gustan
las frugales transgresiones

por ejemplo inventar el buen
amor
aprender
en los cuerpos y en tu cuerpo

oir la noche y no decir
amén
trazar
cada uno el mapa de su audacia

aunque nos olvidemos
de olvidar
seguro
que el recuerdo nos olvida

obedecer a ciegas deja
ciego
crecemos
solamente en la osadía

sólo cuando transgredo alguna
orden
el futuro
se vuelve respirable

todo mandato es minucioso
y cruel
me gustan
las frugales transgresiones

Papelão

Papelão
Belizario, primavera 09

Sentiu os pés gelados, tentou puxar um cobertor... reação às memórias do que um dia foi uma vida a dois...a três...a quatro. Numa casa modesta, onde mesmo que o vento frio passasse pelas brechas entre madeiras, podia se aquecer com os outros corpos deitados ao seu lado... sua mulher, seu filho, sua sobrinha que havia perdido os pais e que ali ficara persistindo na vida. Agora restava o papelão. Não reclamava, buscava estratégias no dia pra buscar um melhor lugar pra dormir, algo pra se cobrir. Naquele dia só restara o papelão. Quando ainda era dia, o havia virado do avesso e tinha escrito: poesia... do que um dia foi sua vida. Desabafos virados do avesso, pois ele sabia... ninguém que passava por ali, mesmo aqueles que o olhavam de canto de olhos e mostravam piedade ou indignação, ninguém! Nenhum deles o ouvia! Numa noite acordara com o céu em chamas, lembra apenas de grunhidos abafados... a mulher...a sobrinha...o filho...a loucura...a rua...ideal de trabalho, ideal de família, tudo isso ele conhecia, mas não fazia mais sentido, escolhera abrir mão...cavalgar a própria vida. Mais uma manhã em Porto Alegre, dos navegantes tristes das ruas... gente que ainda persiste, que ainda sonha...e no avesso, ainda escreve poesia...

Divinare

Desejar ser
Manoel de Barros no Livro sobre nada

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Terça-feira, pós feriado.

Terça-feira, pós feriado.
Belizario, verão 09.

Terça-feira, pós feriado. Sempre da mesma forma encarava o abrir daquela cortina de aço. O estrondo, a lembrança irritada de colocar graxa... poderia começar com menos barulho, com menos estardalhaço. Olhou os livros, tanta coisa que havia absorvido, tantas histórias. Até hoje entra em crise, suas maiores vendas são os Best Sellers de qualquer gente pra qualquer pessoa. Jamais havia pegado um deles. Sua relação com estes livros era simples e pontual: ganhar dinheiro. Largou sua bolsa na mesa, caminhou até o banheiro da loja e passou a preparar o chimarrão. Era dia de conversa, de receptar as histórias dos amigos, clientes... sabia e já havia confessado, não suportava a maioria. Mas gostava daquela posição: receptadora e transmissora de histórias. Talvez por aproximar-se dos sessenta, tanta coisa experienciada... papel de velha, de anciã já não a incomodava, só não tinha mais paciência. Dos jovens a rebeldia, pretensões de poetas, de fazer poesia; dos velhos a acomodação, os bichinhos, a televisão. Ainda lembra da última menina que apareceu e após uma pergunta gentil, cotidiana, daquelas que se faz para ser simpático com o cliente, ouviu: sou poetisa, escrevo coisas, quer olhar?! Não suportava mais crianças com suas anedotas de adolescentes... como se sua dor fosse única, não fosse do mundo. E o que falar dos velhos! Em sua maioria, chegavam , sentavam, com ou sem jornal em mãos comentavam notícias, julgavam parentes, reclamavam da vida e finalizavam sempre da mesma maneira: “O mundo mudou!”... e claro, sempre pra pior... arrogância dos mais velhos... saudosismo barato! Muitas vezes havia pensado em fechar a loja, mas não conseguia, não imaginava viver apenas sob as sombras de seu apartamento. Também já pensara em sair, viajar, mas não se permitia. Havia perdido todos a sua volta, havia feito a opção pela loja. Assim passava os dias: ganhando dinheiro, receptando e repassando histórias. Não as dela, destas quase ninguém sabia, só a dos outros, algumas interessantes, outras pelo menos serviam para um sorriso, para se sentir mais viva, menos morta. Terça-feira pós feriado, logo fim do dia, suspiro, apaga a luz, fecha a porta.

O sonho domado

O sonho domado
Thiago de Mello no livro Mormaço na Floresta.

Sei que é preciso sonhar.
Campo sem orvalho, seca
a fronte de quem não sonha.
Quem não sonha o azul do vôo
perde o seu poder de pássaro.
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para ser não relva apenas,
mas a relva que se sonha.
Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.

Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho te arraste
pelas campinas do vento.
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.