Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sábado, 25 de dezembro de 2010

Quem é quem

Quem é quem
Thiago de Mello no livro Poesia comprometida com a minha e a tua vida

Posso dizer: estou pronto
para me dar ao que vier.
Posso errar, mas não por medo
de me ser no que fizer.
Quem me pode responder
que sabe ser, sendo inteiro,
fiel e simples, sempre a tudo
que faz e não quer fazer?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Mais do que eu

Mais do que eu
Belizario, primavera 09

Se o tempo eu fizesse múltiplo,
E o amor também...
Todas as convenções cairiam aos meus pés.
Pois que desabem!

Sou objeto do que deliro.
Joguete dos meus sonhos.
Vivo na intensidade de minhas paixões.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

XVI

XVI
Roberto Piva no livro 20 poemas com brócolis

abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de vida. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas
nos acampamentos. Sonhar Alto.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sonho

Sonho
Carlos Drummond de Andrade no livro O Avesso das Coisas


Não interprete o sonho; viva-o ou esqueça-o.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ruinas

Ruinas
Mario Benedetti no livro Preguntas al azar

Yo también tengo ruinas
y si acudo al pasado
ya no sé a quien o a quienes
busco entre los escombros
son ruinas sin prestigio
sin guías y con musgo
inmensas y mezquinas
señas de lo que fui
columpiios desnudeces
huellas crepusculares
matutinas nocturnas
la luna las descubre
les dice lo que eran
columnas de tesón
túmulos de experiencia
pedernales de amor
catacumbas de miedo

yo también tengo ruinas
pero no deslumbradas
sino ciegas distantes
residuos de palabras
vestigios de rencores
esquirlas de castigos
reliquias de caricias
ruinas tan taciturnas
calimas de la pena
albergan sus fantasmas
como todas las ruinas
y como todas dejan
escuchar su lamento

yo también tengo ruinas
meses y años troceados
muñones de confianza
perdones en añicos
piedras en las que a veces
me reconozco entonces
amo la piel rugosa
de mis hermanas ruinas

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Nada pra fazer em frente a uma placa

Nada pra fazer em frente a uma placa
Belizario, verão 10.

WELCOME!
Wel come quem?!
Wel não comeu ninguém...
Pô Wel, vai comer alguém!!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Ausência

Ausência
Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

As ensinanças da dúvida

As ensinanças da dúvida
Thiago de Mello no livro Mormaço na Floresta

Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que o fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.

Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Pelas bandas de Jaguarão...

Pelas bandas de Jaguarão
Belizario, verão 10.

Levantei a cabeça e olhei pela janela...
O sol já ía baixo e os raios de sol iluminavam minha face cansada...
Ao longe enxerguei o rio Jaguarão...o povo negro em festa!
Tambores e gargalhadas ecoavam numa força impressionante!
Naquele chão iria aportar meu barco...
Uma nova vida me esperava...
A ancestralidade já selara meu destino:
me convocara para uma nova guerra.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um Lobo em minhas veias

Um Lobo em minhas veias
Belizario, inverno 09.

Aos que tombaram.
Aos descamisados.
Aos que partiram, que foram retirados.

Aos competentes de coisa nenhuma, resta a glória da tirania.
Que embalsama seus bolsos, sua mesquinhez.
Daqueles que não deliram.
Daqueles que não enxergam o porvir.
Que não perseguem a vida.
O sonho do amanhecer.

Anseios

Anseios
Florbela Espanca no livro A Mensageira das Violetas

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha que cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não estendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

V, de viagem

V, de viagem
Paulo Leminski no livro Distraídos venceremos

Viajar me deixa
a alma rasa,
perto de tudo,
longe de casa.

Em casa, estava a vida,
aquela que, na viagem,
viajava, bela
e adormecida.

A vida viajava
mas não viajava eu,
que toda viagem
é feita só de partida.

domingo, 21 de novembro de 2010

Tem gente...

Sem título
Viviane Mosé no livro Pensamento chão

Tem gente que tem o costume de vazar pelos cantos.
No começo vaza calada. Aos poucos. Aos pingos.
Mas se pega gosto principia o derrame.
Escorre quando fala. Escorre quando anda.
Não tem mais braço nem cabelo que sgeure.
Parece que vicia em ficar transbordada.

Mas tem gente que quando transborda é pra dentro.
E corre o risco de ficar represada. E represa você sabe.
Se aumenta muito arrebenta.

Mas se a pessoa ensaia um jeito de derramar pra fora.
Aí vai fazendo leito. Vai abrindo seu caminho na terra.
E a terra parece que se abre pra ela passar. Às vezes não.

sábado, 20 de novembro de 2010

Vinte de novembro

Vinte de novembro
Oliveira Silveira no livro Roteiro dos Tantãs

Dia vinte de novembro
entre as palmeiras do Palmar,
último grito de guerra no ar.

Dia vinte de novembro,
entre as montanhas do Palmar,
os duros músculos do herói
guiando seu braço ágil
na luta desigual.

Dia vinte de novembro,
entre os riachos do Palmar,
o sangue-húmus de Zumbi
derramando-se ao chão
para fertilizar.

Dia vinte de novembro,
entre mensagens
do Palmar,
tambores
de orgulho
e brio
conclamando
a lutar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

El poeta exige a su amor que le escriba

El poeta exige a su amor que le escriba
Frederico García Lorca no livro Poetas Españoles Contemporáneos Breve Antologia

Amor de mis entrañas, viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita
y pienso con la flor que se marchita
que, si vivo sin mí, quiero perderte.

El aire es imortal. La piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.

Pero yo te sufri, rasgué mis venas,
tigre y paloma sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.

Llena, pues, de palabras mi locura,
o déjame vivir en mi serena,
noche del alma para siempre obscura.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A lição

A lição
Belizario, primavera 10.

Um jovem negro avô...
Uma jovem mãe...filho no colo...
O Sopapo...

A pequena mão tocou a pele do tambor,
o choro cessou.
O avô ritmava...
os pequenos olhos cresceram...cara assustada!
Eram as batidas de seu coração.

Jamais esqueceria...
Daquela tarde de calor...
Do tambor...
Do avô...
Do peito pulsando...do coração.

A lição tinha sido ensinada:
A vida é como a pele do tambor,
com fogo deve ser afinada e ritmada...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Sobre a amabilidade

Sobre a amabilidade
Bertolt Brecht no livro Histórias do senhor Keuner

O senhor K. estimava muito a amabilidade. Ele disse: "Conversar com alguém apenas para parecer amável, não apreciar alguém por suas possibilidades, ser amável com alguém só quando ele também é amável, considerar alguém friamente quando é caloroso e calorosamente quando é frio, isto não é amável".

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O poeta da roça

O poeta da roça
Patativa do Assaré no livro Inspiração Nordestina

Sou fio das mata, cantô da mão grossa,
Trabaio na roça, de inverno e de estio.
A minha chupana é tapada de barro,
Só fumo cigarro de páia de mio.

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestré, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola,
Cantando, pachola, à percura de amô.

Não tenho sabença, pois nunca estudei,
Apenas eu sei o meu nome assiná.
Meu pai, coitadinho! Vivia sem cobre,
E o fio do pobre não pode estudá.

Meu verso rastêro, singelo e sem graça,
Não entra na praça, no rico salão,
Meu verso só entra no campo e na roça,
Nas pobre paioça, da serra ao sertão.

Só canto o buliço da vida apertada,
Da liga pesada, das roça e dos eito
E às vêz, rescordando a feliz mocidade,
Canto uma sôdade que mora em meu peito.

Eu canto o cabôco com suas caçada,
Nas noite assombrada que tudo apavora,
Por dentro da mata, com tanta corage
Topando as visage chamada caipora.

Eu canto o vaquêro vestido de côro,
Brigando com o tôro no mato fechado,
Que pega na ponta do brabo novio,
Ganhando lugio do dono do gado.

Eu canto o mendigo de sujo farrapo,
Coberto de trapo e mochila na mão,
Que chora pedindo o socorro dos home,
E tomba de fome, sem casa e sem pão,

E assim, sem cobiça dos cofre luzente,
Eu vivo contente e feliz com a sorte,
Morando no campo, sem vê a cidade,
Cantando as verdade das coisa do Norte.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Alvorada

Alvorada
Rodolpho Xavier

Salve Alvorada Salve, aurora resplendente
Dum porvir cheio de glórias! Bússola da etíope gente
Ao rumo doutras vitórias! Passado que nunca mente,
Velhas lides, transitórias, Hoje, és arca do presente
Que arquivas nossas memórias. A “Campanha de Educação”
Que encetas, desassombrada,
Para não ser desvirtuada Deve vir do coração
Da raça, que escravizada, Foi pelo seu próprio irmão...

domingo, 7 de novembro de 2010

A aprendizagem amarga

A aprendizagem amarga
Thiago de Mello no livro Faz escuro mas eu canto

Chega um dia em que o dia se termina
antes que a noite caia inteiramente.
Chega um dia em que a mão, já no caminho,
de repente se esquece do seu gesto.
Chega um dia em que a lenha já não chega
para acender o fogo da lareira.
Chega um dia em que o amor, que era infinito,
de repente se acaba, de repente.

Força é saber amar doce e constante
com o encanto de rosa alta na haste,
para que o amor ferido não se acabe
na eternidade amarga de um instante.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Despejo na Favela

Despejo na Favela
Adoniran Barbosa

Quando o oficial de justiça chegou lá na favela.
E contra seu desejo, entregou pra seu Narciso um aviso,
pra uma ordem de despejo.
Assinada seu doutor.
Assim dizia a petição: dentro de dez dias quero a favela vazia e os
barracos todos no chão.
É uma ordem superior.
Ô meu senhor, é uma ordem superior.
Não tem nada não seu doutor, não tem nada não.
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão.
Não tem nada não seu doutor, vou sair daqui,
pra não ouvir o ronco do trator.
Pra mim não tem problema,
em qualquer canto me arrumo, de qualquer jeito me ajeito.
Depois o que eu tenho é tão pouco,
minha mudança é tão pequena, que cabe no bolso de trás.
Mas essa gente ai hein como é que faz?
Mas essa gente ai hein como é que faz?

http://www.youtube.com/watch?v=4jAPmGJB5Qk&feature=related

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A flor e a náusea

A flor e a náusea
Carlos Drummond de Andrade no livro Rosa do Povo

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Canção

Canção
Allen Ginzberg no livro Uivo

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano -

sai para fora do coração
ardendo de pureza -
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado

- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobre
feliz até o olho -

sim, sim,
é isso o que
eu qeuria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Gênesis

Gênesis
Barbosa Lessa trechos do livro Rodeio dos Ventos

A criação do céu e da terra: No princípio criou Nhanderuvuçu a atração das coisas, o Anhang dos anhangs, que era a força de Si mesmo...E, para que as coisas vivessem, criou Nhanderuvuçu o Kayuá, o dom da palavra; pois uma coisa só existe quando há um nome para chamá-la.
E então pôde Nhanderuvuçu dizer: "Haja ervas, árvores, cipós; haja pássaros no ar, peixes na água, bichos na face da tera". E cada anhang e cada forma, unidos, resultaram no nome dessas coisas.
E havia só um Tempo e uma só Luz, ambos eternos.

O Êxodo: Mas desde então perderam os homens o dom do Kayuá, a Língua Una, e se puseram a buscar inutilmente a verdade das palavras. Foi o tempo da Incerteza...

Mandamentos de Nhanderuvuçu: ...Respeitarás como bens sagrados o ar e a água e a terra, que de minhas mãos nasceram para a harmonia de um todo e não para o gozo de tua exclusiva ventura.
Honrarás teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na face da terra, e igualmente honrarás teus avós antepassados, para que se prolongue o teu anhang na infinita eternidade....
...Suportarás com dignidade a dor e o sobressalto, pois tudo é passageira inquietação de tua forma.
Não terás chefe ou senhor, pois a única força dos homens se afirma no Kayuá.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Objeto de amar

Objeto de amar
Adélia Prado em Antologia

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

XXII

XXII
Hilda Hilst em trecho do Cantares de perda e predileção

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho

Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sanguessuga

Sanguessuga
Luane Alves

Passo a passo
Eu caminho,
Fugindo de você,
Me guiando
Pro inferno
Longe daqui.
Ou será que o inferno é junto a ti?
Se não for,
Por que essa chama que não se apaga?
Que me aquece,
Fogo que arde em mim,
Sanguessuga,
Levou minha paz,
Quebrou o frasco
Do nosso amor.
A última gota que restou
Hoje se derrama,
Desfila,
Foge pelo canto do meu olho,
Desenha minha cara,
Sanguessuga do meu calor.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Para Lobo da Costa

Para Lobo da Costa
Rodolpho Xavier na A Alvorada

Juntos andavam eles como irmãos
Ao lado da alma o corpo penitente
Sempre juntos lutando heroicamente
Contra o destino e preconceitos vãos.
Se na alma havia sentimentos sãos
Em verdade era o corpo diferente
Uma fundia-se à luz eternamente
O outro ficou no mundo sem seus desvãos.
Subindo a alma volta em resplendores
Transforma-se o arco-íris multicores
Em chuvas, sóis, em astros e poesia.
Não vai ao corpo as regiões celestes
E só na tumba fica, entre ciprestes
Por entre as larvas e entre a terra fria.


Agradecimento carinhoso ao amigo Lúcio Xavier, poeta e historiador, que estudou a belíssima trajetória de Rodolpho Xavier, escritor e militante negro dos finais do XIX, início dos XX. Ver: http://www.overmundo.com.br/overblog/rodolpho-xavier-negro-flaneur-e-memorialista

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

La casada infiel

La casada infiel
Frederico García Lorca no livro Romancero Gitano

A Lydia Cabrera y a su Negrita


Y que yo me la lleve al río
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido.
Fue la noche de Santiago
y casi por compromiso.
Se apagaron los faroles
y se encendieron los grillos.
En las últimas esquinas
toqué sus pechos dormidos,
y se me abrieron de pronto
como ramos de jacintos.
El almidón de su enagua me
sonaba en el oído,
como una pieza de seda
rasgada por diez cuchillos
Sin luz de plata en sus copas
los árboles han crecido,
y un horizonte de perros
ladra muy lejos del río.

Pasadas las zarzamoras,
los juncos y los espinos,
bajo su mata de pelo
hice un hoyo sobre el limo.
Yo me quité la corbata.
Ella se quitó el vestido.
Yo el cinturón con revólver
Ella sus cuatro corpiños.
Ni nardos ni caracolas
tienen el cutis tan fino,
ni los cristales con luna
relumbran con ese brillo.
Sus muslos se me escapaban
como peces sorprendidos,
la mitad llenos de lumbre,
la mitad llenos de frío.
Aquella noche corrí
el mejor de los caminos,
montado en potra de nácar
sin bridas y sin estribos.
No quiero decir, por hombre,
las cosas que ella me dijo.
La luz del entendimiento
me hace ser muy comedido.
Sucia de besos y arena,
yo me la lleve del río.
Con el aire se batían las
espadas de los lirios.

Me porté como quien soy.
Como un gitano legítimo.
La regalé un costurero
grande de raso pajizo,
y no quise enamorarme
porque teniendo marido
me dijo que era mozuela
cuando la llevaba al río.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Corridinho

Corridinho
Adélia Prado no livro Poesia Reunida

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.

O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Obdulio

Obdulio
Eduardo Galeano no Livro Futebol ao Sol e à Sombra

Eu era menino e peladeiro, e como
todos os uruguaios estava grudado no
rádio, escutando a final da Copa do
Mundo. Quando a voz de Carlos Solé
transmitiu a triste notícia do gol
brasileiro, minha alma caiu no chão.
Recorri então ao mais poderoso de meus
amigos. Prometi a Deus uma quantidade
de sacrifícios, se Ele aparecesse no
Maracanã e virasse o jogo.
Nunca consegui recordar as muitas
coisas que prometi, e por isso nunca
pude cumpri-las. Além disso, a vitória
do Uruguai diante da maior multidão
jamais reunida numa partida de futebol
tinha sido sem dúvida um milagre, mas o
milagre foi acima de tudo obra de um
mortal de carne e osso chamado Obdulio
Varela. Obdulio tinha esfriado a
partida, quando a avalanche nos caía em
cima, e depois carregou toda a equipe
nos ombros e com pura coragem impeliu-a
contra ventos e marés.
No final daquela jornada, os
jornalistas acossaram o herói. E ele
não bateu no peito proclamando somos os
melhores e que não há quem possa com a
garra nacional:
- Foi casualidade - murmurou
Obdulio, abanando a cabeça.
E quando quiseram fotografá-lo,
virou de costas.
Passou aquela noite bebendo
cerveja, de bar em bar, abraçado aos
vencidos, nos balcões do Rio de
Janeiro. Os brasileiros choravam.
Ninguém o reconheceu. No dia seguinte,
fugiu da multidão que o esperava no
aeroporto de Montevidéu, onde seu nome
brilhava num enorme letreiro luminoso.
No meio da euforia, escapuliu
disfarçado de Humphrey Bogart, com um
chapéu metido até o nariz e um
impermeável de gola levantada.
Em recompensa pela façanha, os
dirigentes do futebol uruguaio deram a
si mesmos medalhas de ouro. Aos
jogadores, deram medalhas de prata e
algum dinheiro. O prêmio que Obdulio
recebeu deu para comprar um Ford modelo
31, que foi roubado naquela mesma
semana.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tristezas da lua

Tristezas da lua
Charles Baudelaire no livro Flores do mal

Divaga em meio à noite a lua preguiçosa;
Como uma bela, entre coxins e devaneios,
Que afaga com a mão discreta e vaporosa,
Antes de adormecer, o contorno dos seios.

No dorso de cetim das tenras avalanchas,
Morrendo, ela se entrega a longos estertores,
E os olhos vai pousando sobre as níveas manchas
Que no azul desabrocham como estranhas flores.

Se às vezes neste globo, ébria de ócio e prazer,
Deixa ela uma furtiva lágrima escorrer,
Um poeta caridoso, ao sono pouco afeito,

No côncavo das mãos toma essa gota rala,
De irisados reflexos como um grão de opala,
E bem longe do sol a acolhe no seu peito.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Pátria de chuteiras

Pátria de chuteiras
Belizario, inverno 10.

África do sul,
terra rememorada nestes tempos de bola...
Soweto...tantos tombados...sangue juvenil!
Brasil. Pátria de chuteiras...ruas e casas enfeitadas...euforias mil!
Não desceu do ônibus...que carregava o país todo dentro...
não pisou em terra de negro...decidiu e não viu.
Desfilou entre campos de golfe,
de suas vestes o capital emergiu como cartão postal!
Pátria de chuteiras incapaz de reconhecer um negro olhar calejado...
Tao parecido como o seu...esquecido como tanto quis o general,
que emergiu em 31 de março, 1º de abril.
Não abraçou Mandela, não acendeu vela a Biko.
Preferiu uma grama artificial...não sujou sapato com terra vermelha,
aleitou o passado tirano, endossou o sono do rico.
Enfeitou a rua...chorou porque não ganhou...e o q sobrou?!
Uma Holanda, bôer “apartheideana”, aplaudida...
uma Fifa corrupta, das mais viris capitalistas...
Teixeiras, especuladores, dinheiro encardido...
que chance se perdeu,
de estreitar o laço oprimido,
e poder cantar pelas ruas de Soweto, de qualquer viela do meu Brasil:
agora chegou tua vez burguês tirano!
Não mais bateu na trave,
do gol libertário,
fiz meu fuzil!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sem título - Lobo!

Sem título - Lobo!
Lobo da Costa no livro Auras do Sul

Enquanto o pobre operário
Do sono o espectro afugenta,
- Rasgando um porvir aos filhos
Aos golpes da ferramenta;

Enquanto – cortando os mares
Batidos pelas procelas,
O nauta sonha o futuro
Ao surdo bramir das velas;

Enquanto o triste soldado,
Prostado junto à espingarda,
Vela da pátria o sossego...
Sentindo orvalhos na farda...

Enquanto em calma vigília
Pensa o sábio – noite fora
Sonhando o porvir do povo
Sem mesmo dormir um’hora;

Enquanto em fria senzala,
Sobre a trapeira atirado,
Sonha o escravo a liberdade
Como um cão acorrentado...

O rico, o nobre, que nunca
Teve da glória a emoção,
Dorme... e entre sonhos murmura:
Que tolos! Que tolos são!

domingo, 10 de outubro de 2010

Todas as vidas

Todas as vidas
Cora Coralina no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Desejos vãos

Desejos vãos
Florbela Espanca no livro Sonetos

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz imensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até a morte!

Mas o Mar também chora de tristeza ...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras ... essas ... pisa-as toda a gente!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ainda ontem...

Ainda ontem...
Belizario, outono 05.

Ainda ontem um sujeito passou, bateu nas costas e disse:
A vida é feita pra sonhar, e os amigos pra passar.

Ainda ontem, outro doido passou, olhou nos meus olhos e disse:
Mesmo que fujas pra outro lugar, teu coração ainda vai ficar por lá.

E eu cansado de olhos e de reclamações...
Peguei as malas...fui morar em outro lugar.

Mas não, não adianta fugir, não adianta chorar...
que onde for, a mesma vida vai te esperar.

Ainda ontem encontrei amigos, nas esquinas que fiz perder sentido.
Eles não estavam mais lá, mas ainda insistia em reencontrar.

E os bares, que outrora me faziam sorrir, poetar e cantar...
Hoje são becos escuros de solitários a procura de um par.

Mas sim, os amigos vão partir, as ruas vão entortar...
e na estrada vais ter que te reinventar.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Gostosuras

Gostosuras
Mario Quintana no livro Preparativos de viagem

Tua saudade tem gosto de amora.
O teu beijo tem gosto de pitanga.

sábado, 2 de outubro de 2010

Finda

Finda
Lúcio Xavier

Finda, tua cólera de indomadas,
Corre na profusão de um tempo,
E açoita a longitude cerrada,
Qual verbo que te estanca, ainda.
Por isso, finda,
No horror da flor cortada,
E tua pele rija saberá, retida,
Se o amor, que te põe vencida,
Não acata mais a tua dor velada.
Morre, em mim, tua canção de vida,
Que de asas rotas se achará traída.
Grita, corta, sangra em teu altar temido
Cuspindo à cara dessa vã mentira,
Toda dor desse ateu gemido,
Pra que renasça seca, tua letal ferida.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Eu

Eu
Maiakóvski no livro Poemas

Nas calçadas pisadas
de minha alma
passadas de loucos estalam
calcâneo de frases ásperas
Onde
forcas
esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
pescoço de torres
oblíquas

soluçando eu avanço por vias que se encruzilham
à vista
de cruci-
fixos

polícias

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Poema 20

Poema 20
Pablo Neruda no livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mormaço de Primavera

Mormaço de Primavera
Thiago de Mello no livro Poesia comprometida com a minha e a tua vida

Entre chuva e chuva, o mormaço.
A luz que nos entrega o dia
não dá ainda para distinguir
o sujo do encardido,
o fugaz, do provisório.
A própria luz é molhada.
De tão baça, não me deixa
sequer enxergar o fundo
dos olhos claros da mulher amada.

Mas é com esta luz mesmo,
difusa e dolorida,
que é preciso encontrar as cores certas
para poder trabalhar a Primavera.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Comportamento Geral

Comportamento Geral
Gonzaguinha


Você deve notar que não tem mais tutu
e dizer que não está preocupado.
Você deve lutar pela xepa da feira
e dizer que está recompensado.
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado.
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado.

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal.
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado".
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado.
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado.
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado.

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você merece, você merece.
Tudo vai bem, tudo legal.

E um Fuscão no juízo final.
Você merece, você merece.

E diploma de bem comportado.
Você merece, você merece.

Esqueça que está desempregado.
Você merece, você merece.

Tudo vai bem, tudo legal.


http://www.youtube.com/watch?v=LcngqkLujMA

sábado, 18 de setembro de 2010

Janela sobre o corpo

Janela sobre o corpo
Eduardo Galeano no livro As palavras andantes

A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Meu irmão

Meu irmão
Belizario, inverno 10.

Cresci do lado de um alemão.
Que foi desdentado, que foi dentuço...
hoje é carequinha, antes foi cabeludo...
andávamos sempre juntos...meu irmão.

Sempre nos cutucávamos, fazia parte...
Ora me subornava pedindo doces pra não entregar o boletim...o meu sempre péssimo.
Ora eu corria pra entregar suas peripécias...dedo duro gritava ele com cara de brabo.

Ele era goleiro, eu atacante...
depois foi atacante e eu goleiro...
raramente jogávamos no mesmo time.
O legal era mantermos a rivalidade.
Tranquilamente explicável...
um capricórnio, outro sagitário.

Mas ai de quem me ofendesse ou me cutucasse
subia-lhe as têmporas, ficava vermelho...
e não deixava que ninguém me tocasse!

Sempre fiquei todo bobo nessas horas, confesso...
quem não quer ser protegido...tornar-se intocável!
Meu irmão me fez assim...inabalável.
É, eu sei....acho que no fundo fui mimado.

Desde pequeno observei suas coisas...seus gostos...suas práticas...
achava aquilo tudo muito interessante....debochava dele, algumas vezes achava excêntrico pacas!
Como aquele montão de moedas juntadas e classificadas...
Ficava pensando qual era meu papel de mais velho...se realmente eu me sentia assim...
Hoje acho que não...nutri a vida inteira admiração e resignação com as opiniões dele.
Na verdade, sinto que ele também me ouviu muitas vezes.

Curto muito relembrar os jogos que fomos juntos na Baixada...
as pescarias...
as peladas...
as caminhadas com chimarrão...
as festas e as ressacas.

Hoje distantes, não nos cuidamos mais tanto...
Parei de jogar bola...parei de pescar.
Mas continuamos a conversar sobre a vida...as aulas...a tomar mate...
Sobre como anda o mundo...sobre como é difícil ser adulto.

Continuo a admirá-lo muito!

Um professor aguerrido trabalhador...
Dono de sua própria vida,
e que aqui dentro o mantenho
com muito companheirismo e amor.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Renasce a ode de Lorca em Canguçu

Renasce a ode de Lorca em Canguçu
Lucio Xavier

Reencarnado;
aquele belo rosto,
de menina:
fechada,
imaculada,
irredutível solta
pelos campos de Lorca.
A vida corre
e lhe oferece
A aflição urbana.
Belas rudes mãos
lhe puxam de um limite à tona.
Indifere seu sentido,
na pura,
simples,
feliz
e suficiente lide de azeitona!
No futuro repetido,
o mesmo rosto
da Espanha primordial,
nasce enraizado
Numa face de cristal;
efêmera vontade de ficar
medo de perder,
ânsia de ganhar um mundo
que lhe agride,
lhe proíbe!
A mão de agora
não mais puxa.
Quer lhe plantar!
O belo rosto se redime,
dá sentido,
ouve,
sonha
e reinventa
os passantes de Granada para Sevilha.
Prova para história
a independência de um ser rural,
por mãos que lhe percam,
achem
e reencontrem.
Seu sentido, agora,
esconde a raiz na terra arada!
Urbana?
Por lei.
Passa nítida
e se compõe,
permitindo para si
o campo na alma,
contra toda ilusão
que a cidade lhe semeia.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O Apanhador de Desperdícios

O Apanhador de Desperdícios
Manoel de Barros no livro Memórias Inventadas - A Infância

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Tempo e o Vento

O Tempo e o Vento
Mario Quintana no livro Apontamentos de História Sobrenatural

Para Érico Veríssimo, em comemoração aos seus 65 anos


Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo

Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo

E o vento!

O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com teus cabelos...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Salomé

Salomé
Mário de Sá Carneiro na coletânea Livro das Cortesãs

Insônia roxa. A luz a virgular-se em medo,
luz morta de luar, mais alma do que lua...
Ela dança, ela range. A carne, álcool de lua,
alastra-se pra mim num espasmo de segredo...

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio...Alabastro!...A minha alma parou...
E o seu corpo resvala a projetar estátuas...

Ela chama-me em íris. Nimba-se a perder-me,
golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais...A doida quer morrer-me:

mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto e vou arder-me
na boca imperial que humanizou um santo...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Da Alegria e da Tristeza

Da Alegria e da Tristeza
Khalil Gibran em trecho do livro O Profeta

Então, uma mulher disse: Fala-nos da Alegria e da Tristeza.
E ele respondeu:
Vossa alegria é a tristeza desmascarada.
E o mesmo poço de onde surge vosso riso esteve muitas vezes cheio das vossas lágrimas.
E como pode ser diferente?
Quanto mais profundamente a tristeza escava o vosso ser, mais alegria ele pode conter.
Não é o cálice que leva o vosso vinho o mesmo cálice que foi queimado no forno do oleiro?
Não é a lira que conforta o vosso espírito a mesma madeira que foi esculpida com facas?
Quando estiverdes felizes, olhai no fundo dos vossos corações e vereis que, na verdade, estais chorando pelo que foi prazer.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Virgem

Virgem
Thiago de Mello no livro A canção do amor armado

Que me perdoem os varões
nascidos em Virgem.
Com a determinação e o espírito crítico
de que são capazes,
que tratem de viver e obrar
do melhor modo possível
para esquivar-se às maléficas
(estou avisando)
influências de Mercúrio,
às quais estarão sujeitos
em seguidos quadrantes do tempo.

Sucede que não posso lhes dar mais de mim,
tanto são os cuidados
que me reclama a fortuna
das delicadas mulheres de Virgem,
para quem os dias que virão
serão de memoráveis sucessos.
De um modo geral, estarão na crista
da onda mais ensolarada.
Mas é preciso que te ajudes, companheira.
Não te garanto que tudo sejam flores.
Ultimamente abandonaste tua estrela,
que anda navegando solitária
pelos ermos do teu peito.
A conjunção de Mercúrio e Marte,
com a Lua de permeio,
põe o teu amor à beira do perigo.
Sobe com ele a montanha mais verde
e abriga tua esperança
no ventre de uma palmeira.
Sei que gostas dos mecanismos deslumbrantes,
preferes a rigidez dos esquemas,
que aliás não são teus,
e o equilíbrio da conduta humana.
Mas te asseguro que às vésperas
do florescer dos trigais,
aprenderás a desfazer a ordem do trânsito
e a subverter a cronologia dos relógios.
Porque no meio da primavera
inventarás alta noite
uma rosa estrelada
para tua pessoa mais amada.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Paranóia em Astrakan

Paranóia em Astrakan
Roberto Piva no livro Paranóia

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela

onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos
arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Persistência do Eu Romântico

Persistência do Eu Romântico
Waly Salomão no livro Algaravias

O real é oco, coxo, capenga.
O real chapa.
A imaginação voa.

Escrevi até a exaustão
no pergaminho d'água do sono.
Nessas linhas esvaídas no vórtice da vigília,
ao mesmo tempo em que inebriado ouvia
com o mais apurado ouvido absoluto,
parece que eu transcrevia
com a exata minúcia de geômetra-matemático,
em uma vivida e mutável clave,
as notas do sempre mesmo rouxinol.
Sumida a cor do perfume das rosas
de Hafiz de Chiraz
sem deixar pista de armazém,
aparelho clandestino,
ponta de estoque, local de resgate,
arquivo ou fichário
do fantasmático país do olvido
dessa amalgamada região dos tropos,
acordei
(oh! calígrafo dopado!)
e
nada restou impresso.

Reduzido a esqueleto de éter,
Poeta mente demais...
Uma borboleta bate as asas
dentro do meu peito
e provoca furacões
lá na Cochinchina. OU vice-versa.

O real é oco, coxo, capenga.
O real chapa.
A imaginação voa.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Balada do Festival

Balada do Festival
Hilda Hilst em trecho do livro Balada do Festival


IV
a Vinícius de Moraes

Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
(Porque fui mais amante que amiga)
Sem dúvida dirão coisas que não fui.
Ou então com grande generosidade:
Não era mau poeta a pequena Hilda.

Terei rosas no corpo, nas mãos, nos pés.
Sei disso porque fiz um pedido piegas
à minha mãe: “Quero ter rosas comigo
na hora da minha morte.”

E haverá rosas.
São todos tão delicados
tão delicados...

Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
E um deles dirá um poema sinistro
a jeito de balada em tom menor...

Tem tanto medo da terra
a moça que hoje se enterra.
Fez poema, fez soneto
muito mais meu do que dela.
Lá, lá, ri, lá, lá, lá, lá.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cabelos

Cabelos
Cruz e Souza no livro Faróis

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluído vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos...

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia...

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida noite da melancolia!

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Mau sangue

Mau sangue
Arthur Rimbaud em trecho de Mau Sangue do livro Uma temporada no inferno

O sangue pagão retorna! Se o Espírito está próximo, por que Cristo não o ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o Evangelho caducou! O Evangelho! O Evangelho!
Aguardo Deus com gula. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Eis-me na praia provinciana. Que as cidades se acenderam de noite. Minha jornada terminou, abandono a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões, climas ignotos me curtirão. Nadar, desbastar verdes, caçar, sobretudo fumar; tomar bebidas fortes como metal fundindo, como faziam nossos caros ancestrais em volta do fogo.
Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso; pela máscara, me julgarão raça forte. Terei dinheiro; vou ser ocioso e brutal. As mulheres cuidam dos ferozes doentes de volta dos países tropicais. Entrarei nos negócios políticos. Serei salvo.
Por ora sou maldito, tenho horror da pátria. O melhor é um sono bem bêbado na praia.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Reforma Agrária

Reforma Agrária
Patativa do Assaré no livro Ispinho e Fulô

Pobre agregado, força de gigante,
Escuta amigo o que te digo agora,
Depois da treva vem a linda aurora
E a tua estrela surgirá brilhante.

Pensando em ti eu vivo a todo instante,
Minha alma triste desolada chora
Quando te vejo pelo mundo afora
Vagando incerto qual judeu errante.

Para saíres da fatal fadiga,
Do horrível jugo que cruel te obriga
A padecer situação precária

Lutai altivo, corajoso e esperto
Pois só verás o teu país liberto
Se conseguires a reforma agrária.

sábado, 28 de agosto de 2010

Pescador

Pescador
Cyro de Mattos no livro Cancioneiro do Cacau

As escamas azuis
na rede da infância,
antigos pescadores
traziam as canoas
carregadas de peixe.

Hoje
malhas longínquas
na tarde sem voz
pescam lembranças.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Canção da amabilidade

Canção da amabilidade
Bertolt Brecht no livro Poemas e Canções

Pisar o semelhante,
não será fatigante? Em vossa fronte
incham as veias com o esforço da cobiça.
Aberta ao natural
a mão oferta e recebe com facilidade igual.
Só a ânsia de agarrar é que causa a fadiga. Ah,
que alegria, dar algo! Como é bom
ser amável - uma palavra boa
é como um leve suspiro que voa!

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Poço

O Poço
Pablo Neruda

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Deixa esse leque!

Sempre gostei de contar histórias, e num desses portos que andei atracando, me emocionei relembrando aqueles malungos...e não é que a dona Memória apareceu!
Com seu saco de arrasto, e aquela gaita a tocar, me jogou pra fora do tempo...senti o cheiro daquela casa...um som que vinha distante...marcado...era o Sopapo! Todos aqueles malungos ainda jovens ao lado...e crianças e velhos contentes a dançar...é, aquela casa durante aqueles anos foi com certeza muito, mas muito engraçada...Senti um toque no meu braço....dona Memória me trazia de volta ao tempo...o som ficava cada vez mais longe...ainda lembro dessa música...

Deixa esse leque!
Belizario e Barbosa, primavera 02.

Deixa esse leque!
Deixa esse leque...deixa esse leque!!

Os ventos que assopram esse leque,
são os mesmos que assopraram o navio negreiro!
Os burgueses que balançam esse leque,
são os mesmos que encomendaram o navio negreiro!

Tirados, retirados das terras do além mar,
o negro pelotense não parou de batucar!

E pensar,
superar,
questionar
e lutar!

Deixa esse leque!
Deixa esse leque...deixa esse leque!!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Negra Teia

Negra Teia
Lúcio Xavier

Puro sofrimento,
que narrado.
Aproveita o lucro da noite
e duela com o grito,
já estancado.
Se joga em cego,
na cidade correndo,
se aflige retendo
do sangue ao prego.
Quando segue negra,
de olhar despido,
tece a negra teia
e o jugo morre,
arrependido.
No curvo maquinário humano,
é fio perdido;
em negro dorso,
cativo em corso
é ponto unido.
Se o ferro do patrão,
que hoje brilha,
reluz clarão,
sai mais ao dente,
que morde a linha
ou se independe.
E a negra em dor
no espasmo nega;
a teia em passo,
pra compor num traço
que do pavor,
em teia pega.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

No te salves

No te salves
Mario Benedetti no livro Antologia Poética
 
No te quedes inmóvil
al borde del camino
no congeles el júbilo
no quieras con desgana
no te salves ahora
ni nunca
no te salves
no te llenes de calma
no reserves del mundo
sólo un rincón tranquilo
no dejes caer los párpados
pesados como juicios
no te quedes sin labios
no te duermas sin sueño
no te pienses sin sangre
no te juzgues sin tiempo

pero si
pese a todo
no puedes evitarlo
y congelas el júbilo
y quieres con desgana
y te salvas ahora
y te llenas de calma
y reservas del mundo
sólo un rincón tranquilo
y dejas caer los párpados
pesados como juicios
y te secas sin labios
y te duermes sin sueño
y te piensas sin sangre
y te juzgas sin tiempo
y te quedas inmóvil
al borde del camino

y te salvas
entonces
no te quedes conmigo.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Negrinho do Pastoreio

O Negrinho do Pastoreio
João Simões Lopes Neto em trecho do conto no livro Lendas do Sul

Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.

Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...

E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…

Então, muitos acenderam velas e rezaram o Padre Nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.

***

Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.

***

Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.

O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.

Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo —Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O encontro noturno do gato egípcio com o andarilho

O encontro noturno do gato egípcio com o andarilho
Belizario, outono 07.

Viver é isso.
Atirar-se, cair, refazer-se a cada dia.
Ontem conheci uma menina.
Seria simples demais descrever como linda.
Ah, mas como é bonita!

Me disse que era uma princesa egípcia,
E a senti delicada.
Mas o que me impressionou foram seus olhos,
De gato!
Sabe,
Aqueles olhos desconfiados, enigmáticos?!
Olhos insatisfeitos,
De mulher que quer se atirar na vida,
Que quer de qualquer forma ser feliz, ser "gauche", ah, bendita menina!

Como disse, olhos de gato,
Mente de gato!
Que anda pelos telhados, insatisfeito,
E quando todos pensam que perdeu o equilíbrio,
Se mostra mais destemido que qualquer bicho!
E se bicho homem me faço e existo,
Naqueles olhos mergulho,
Como nas minhas andanças noturnas,
Acompanhado pelos gatunos,
Me fragmentando, por vezes medroso,
Por vezes destemido.
Observado, protegido
por este delicado gato egípcio!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Se

Se
Giordana Porrat

Se o mundo te der limões:
Faça uma revolução;
Jogue-os na cara de quem te deu.
Se o mundo te der tormenta
Ria dele e diga a verdade:
“_ Não sou nada mais que um pequeno grão!
Se, vem a ventania, eu vôo;
Se, a chuva chega, eu bóio;
Se, pisam em mim, eu incomodo até o fim.”
Quando o mundo passou a ser um obstáculo?
Por que foi que abandonamos
As matas e os rios,
Para nos cercar de concreto e pedra?
Compromissos e horas marcadas?
Competição, não pela sobrevivência,
Mas pelo artigo de luxo?
O homem sangra,
Sente fome, tem medo e frio;
Já não sorri.
E têm uns melhores que os outros?
O homem tem excretas,
Não pensa no que diz,
Magoa por ego ferido,
Louva deuses distantes,
E não olha para o ser ao seu lado.
Se preocupa com o futuro
E não faz nada no presente.
Vende uma imagem
Composta de máscaras.
Sente emoções ficcionais,
Copiadas do último filme de ação.
Quando sente...
Se sujeita por fraqueza,
E não por compreensão.
Amontoa-se em cidades.
Cria padrões e regras
-nega individualidades-
Comete violências inexplicáveis.
Pensa!
E como pensa:
Em como perder quilos;
Em como se esconder da responsabilidade;
Em como passar a vida da maneira mais passiva possível.
Eu sou vício e choro!
Clareza e loucura!
Eu sinto o mundo saindo pelos ralos
Fétido e pútrido,
E sei que não sou a rolha que O impede de esvair por inteiro.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O filho que eu quero ter

O filho que eu quero ter
Vinicius de Moraes no livro A Arca de Noé

É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim chorando acalentar
O filho que eu quero ter.

Dorme, meu pequenininho
Dorme, que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem.

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim.

Dorme, menino levado
Dorme, que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem.

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai sem cuidado
Dorme, que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Poemas aos homens do nosso tempo

Poemas aos homens do nosso tempo
Hilda Hilst em trecho de Poemas aos homens do nosso tempo

III

homenagem à Natalia Gorbanievskaya


Sobre o vosso jazigo
- Homem político -
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens.
Sobre os vossos filhos
- Homem político -
A desventura
do vosso nome.
E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre as vossas vidas
- Homem político -
Inexoravelmente, nossa morte.


V

homenagem a Alexei Sakarov

de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima
LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO. POLVO.
UM DIA.
O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.
E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Infância vivida, lugar especial

Infância vivida, lugar especial
Belizario, inverno 10.

Laranjal!
Tuas ruas de barro...tuas ruas de vagalume...
Que não existem mais...asfalto!
Teu cheiro a mato...tuas casas de folhas de bananeira...tuas figueiras dos bugios...
Que não existem mais...desmato!
Tuas valetas que mais eram córregos de onde vertiam a água, o suco da floresta, as pescarias de girino...
Que não existem mais...esgoto!
Bicicletas no ombro...travessia pelo pântano até a barra...fritada de jundiá, mandinho, pintado...
Que não existem mais...carro!
Noitadas de poesia, beijos e amor embaixo da lua, no berço da lagoa, cheiro de areia...
Que não existem mais...baladas!
Ainda verto paixões por esse lugar.
Ainda sinto o gosto da ameixa amarela roubada aos gritos desesperados do cusco...
Ainda sinto o vento na cara, as pernas bambas na frenética bicicleta, depois de um beijo roubado...
Ainda comemoro os gols, mesmo os de canela, no campinho, caixa d’água, eucaliptos, maracalombo,...
Laranjal, das histórias de fantasmas...
Da cunhã, da pretinha, do rex, do fico, da polenta...do cheiro a cachorro!
Que ainda guarda o meu maior legado.
Infância vivida...
O canto dos pássaros...
Gosto de liberdade...
Mãe e Pai!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Angelina

Angelina
Lila Ripoll no livro Primeiro de maio

A massa resiste,
rebelde,
indomável,
erguendo muralhas,
de peitos e braços,
às frias espadas,
aos altos fuzis.

A rua tranquila,
tão cheia de cantos,
encheu-se de cinza,
de sangue e de pó.

O povo resiste
e os tiros aumentam.
Protestam as vozes
num vivo clamor.

Respondem espadas,
fuzis apontando,
fuzis metralhando.

A massa recua
retorna e avança
com novo vigor.

Na rua estendidos
Euclides e Honório,
e mais Osvaldino,
fecharam seus olhos,
seus lábios calaram.

As vagas aumentam
de ódio incontido.
E há novos protestos
do povo ferido.

Alguém arrebata
das mãos de Angelina
a verde Bandeira
que ondula no ar.

Os tiros procuram
o peito de Recchia.
E os tiros ficaram
no peito a morar.

Os olhos dos homens
refletem angústia,
revelam paixão.

Ferido está Recchia,
e há sangue no chão.

Ninguém junto ao leme,
ninguém no comando.
Vermelhas papoulas
matizam o chão.

O rosto em tormento,
cabelos ao vento,
retorna Angelina,
mais alta e mais fina.

"A nossa Bandeira
nas mãos da polícia?"

E à luta regressa
com febre no olhar.

Os braços erguidos,
subiam, caíam,
em meio a outros braços,
o mastro a arrastar.

e às mãos vitoriosas,
num breve momento,
retorna a Bandeira
batida ao vento.

Um frio estampido
correu pelo espaço,
na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,
vacila Angelina,
e a flor de seu corpo
na rua tombou.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sob um céu de blues

Sob um céu de blues
Piqui


É chegada a hora. A hora exata sempre chega. Quando menos esperamos por ela, eis que surge sua magricela sombra pelo ar. Um envelope atravessou a porta. A porta, oca e sem cor, jamais saberia o conteúdo daquela missiva. O segredo se consumava naquele momento. Correntes de ar frio seguiam espalhando-se pelo corredor. As paredes umedecidas escorriam suor pela labuta de existir. Sempre paredes. Sem cor e sem cheiro definido, mas restavam ainda marcas obscenas da vida cotidiana. A mão trêmula apanhou aquela forma insegura levando seus olhos aos quatros cantos do envelope. O destinatário não emitia dúvida alguma que aquilo a pertencia. Selo com a imagem de ... Por um instante a memória apagou-se por inteiro. Vagando horas por infinitos labirintos lembrou-se da mãe. Mas a imagem se desfez num instante. Voltou a si. Pouco a pouco abriu o envelope por inteiro. Naquele momento os olhos pareciam vagar como um velho barquinho de papel sobre a água. Seguiam as palavras em movimento de ondas. Lutava impunemente com a fúria daquela tempestade de significados. Apertou em seu rosto o papel envelhecido. Jamais imaginaria que aquilo era verossímil. Não!Não! Não pode ser. Um suor caiu-lhe pela face. .. deitado no divã via tudo girar. No divã as coisas... metamorfose. Acordou, olhou para o lado e sorriu. Um papel envelhecido, com belas letras desenhadas. Ergueu-se num átimo. Levou a carta a boca e a beijou. O amor restava-lhe ainda, naquelas letras de marfim.

sábado, 7 de agosto de 2010

Comunismo de Pés

Comunismo de Pés
Lobo da Costa no livro Lucubrações

Eram dois estudantes, habitavam
Ambos na mesma casa e por desgraça
Tinham p'ra uso mútuo um par de botas...
E o mais não é chalaça
Passavam por janotas!

Foi no tempo da onça e quem não sabe
Que a jaula predileta desse bicho -
È quase sempre a casa do estudante,
Por gosto...ou por capricho!
- Mas, passemos adiante:

Muito se amavam eles; - é verdade
Que pouco andavam juntos; se passeava
O mais velho, - é bem fácil de prever
Que o mais moço ficava,
Pois tinha o que fazer.

Se por acaso viam-se obrigados
A frequentar a aula ao mesmo jeito,
Um sentia no pé esquerdo calos...
O outro no direito,
Que era lástima olhá-los!

Morre por fim Pílades de casa...
O mais velho...o mais pobre! Orestes chora,
E pede à terra em lágrimas banhado -
Que seja leve agora,
A quem pouco pisou com seu calçado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Piedade

A Piedade
Roberto Piva no livro Paranóia

Eu urrava nos poliedros da justiça meu momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados a noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universaliaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Antítese

Antítese
Castro Alves no livro Os Escravos

O seu prêmio? - O desespero e uma carta de alforria quando tem gastas as forças e não pode mais ganhar a subsistência. Maciel Pinheiro

Cintila a festa nas salas!
Das serpentinas de prata
Jorram luzes em cascata
Sobre sedas e rubis.
Soa a orquestra... Como silfos
Na valsa os pares perpassam,
Sobre as flores, que se enlaçam
Dos tapetes nos coxins.

Entanto a névoa da noite
No átrio, na vasta rua,
Como um sudário flutua
Nos ombros da solidão.
E as ventanias errantes,
Pelos ermos perpassando,
Vão se ocultar soluçando
Nos antros da escuridão.

Tudo é deserto... somente
Em meio à praça se agita
Dúbia forma que palpita,
Se estorce em rouco estertor.
- Espécie de cão sem dono
DEsprezado na agonia,
Larva da noite sombria,
Mescla de trevas e horror.

É ele o escravo maldito,
O velho desamparado,
Bem como o cedro lascado,
Bem como o cedro no chão.
Tem por leito de agonias
As lajes do pavimento,
E como único lamento
Passa rugindo o tufão.

Chorai, orvalhos da noite,
Soluçai, ventos errantes.
Astros da noite brilhantes
Sede os círios do infeliz!...
Que o cadáver insepulto,
Nas praças abandonado,
É um verbo de luz, um brado
Que a liberdade prediz.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O ser é um mar sem fronteiras e sem medidas

O ser é um mar sem fronteiras e sem medidas
Khalil Gibran em trecho do livro O profeta

Não digais, "Encontrei a verdade", mas sim, "Encontrei uma verdade".
Não digais, "Encontrei o caminho da alma", mas sim "Encontrei a alma andando em meu caminho".
Pois a alma anda em todos os caminhos.
A alma não anda sobre uma linha, nem cresce como um junco.
A alma desdobra a si mesma, como um lótus de infinitas pétalas.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

EStou cansada de ser

Estou cansada de ser
Giordana Porrat

Estou cansada de ser
Só mais um número,
Dentro dos registros:
Demográficos,
Fotográficos,
Pornográficos.
Estou cansada de NÃO ser,
Pois entre o ser ou não ser
Escolheram por mim...
E não fui!
Assim como não é ou será.
O mundo rodou,
E cresceu.
Tudo é cosmopolita
Dentro das negociações econômicas
E na política dos vencedores
- que não comem mais as batatas –
As batatas agora são lixo tóxico,
Assim como as flores transgênicas
E os homens mercenários.
Cresça,
Coma,
Case.
Encha o mundo
De mais perdedores.
Encha o mundo
De consumidores.
Fale,
Veja,
Transe.
Seja mais um cego no tiroteio;
Seja mais uma voz surda;
Seja mais um objeto sexual
-pelo menos você terá função.
Destrua,
Corrompa,
Vegete.
Ninguém se importa com o que pensa
Só há um pensamento que domina.
Assista Tv,
Tome Coca,
Aceite a vida como ela é:
Como eles te deram.
Honre a memória,
Respeite a ordem
Imposta pela minoria
On-impotente e com síndrome de Deus.

sábado, 31 de julho de 2010

Amigo meu...

Amigo meu...
Belizario, inverno 10.

Amigo meu,
perdido...
Só hoje pude entender...
Na beira do fogão, agachado, olhando o reflexo de meus pés no vidro,
escutei aquelas músicas...
Eras poeta e eu não sabia...
Dizia saber, mas não sentia...
Meu tempo hoje, é teu tempo ontem.
Inocente, não pude entender...
Fiquei escondido naquele casulo que me amadureceu,
mas não existe mais.
Sinto saudade...
Da cumplicidade...dos sonhos...
Das conversas boas que faziam parar o tempo...ou curti-lo...
Como as cachacinhas que adorávamos fazer...e bebê-las.
Não sei mais onde andas...nem sei com quem...
Mas desejo profundamente reencontra-te...
Melhor numa esquina...total subversiva...
E poder dizer-te:
perdoa-me...ofereço-te meu abraço,
superei todos o mal entendidos...
Amigo meu, maravilhoso rememorar-te!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A duas flores

A duas flores
Castro Alves no livro Espumas Flutuantes

São duas flores unidas,
são duas rosas nascidas
talvez no mesmo arrebol,
vivendo no mesmo galho,
da mesma gota de orvalho,
do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
de um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
como a tribo de andorinhas
da tarde no frouxo véu...

Unidas, bem com os prantos,
quem em parelha descem tantos
das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
como as covinhas do rosto,
como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
numa eterna primavera
viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
na rama verde e florida,
Na verde rama do amor.

sábado, 24 de julho de 2010

Sou duro

Sou duro
Oliveira Silveira no livro Roteiro dos Tantãs

Sou duro, sou duro,
no fundo eu sou é duro
mas serei piedoso:
bendito o leão
que comeu o missionário...
Sou duro, eu sou é duro,
tenho minhas razões
mas serei caridoso:
bendito o canibal
que devorou a expedição...
Eu tenho meus motivos,
por isso é que sou duro,
mas serei generoso:
bendito o vidro moído
nos bofes do senhor,
bendita a lança, as balas
de Zumbi, do Haiti,
há muito tempo eu tenho os meus porquês
de ser duro, sou duro,
mas serei bom e dócil:
benditos os riots,
o saque, o fogaréu
e os raios afiados de Xangô
para os que me fizeram
(sou duro, eu sou é duro)
ter estas razões.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Bebê diferente

Bebê diferente
Batatinha

Muito bebê chora, chora pra comer!
Muito bebê chora, chora pra valer!
Eu como sou um bebê diferente,
E quando choro quero aguardente!!

Mamãe, mamãe, eu quero aguardente!
Mamãe, mamãe, estou tão contente!
Você bem sabe como é que a coisa vai,
Eu sou igualzinho a papai!!


http://www.4shared.com/audio/yk7Ef8da/Batatinha_-_Beb_Diferente.htm

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Reverso

Reverso
Lúcio Xavier

Duvido,
Que ainda haja tempo disposto.
Mirando no rosto,
Daquele que ainda intimido.

Um dia aguerrido,
Cerrava nos dentes desgosto,
Proposto,
Pra todo alarido um bandido.

Agora caído,
Suplica por mero recosto.
Apela pro gosto,
Que em mim ainda nota retido.

Esquece iludido,
Do vão dessa vida me imposto
E assim sobreposto,
Me arranca da dor um gemido.

Se julga traído,
Clamando por tempo lhe posto.
Recebe o reposto,
Por ter-me um dia perdido.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Chimarrão

Chimarrão
Música de Vitor Ramil do disco Délibab
Poema de João da Cunha Vargas

Velho porongo crioulo,
Te conheci no galpão,
Trazendo meu chimarrão
Com cheirinho de fumaça,
Bebida amarga da raça
Que adoça o meu coração.

Bomba de prata cravada,
Junto ao açude do pago,
Quanta china ou índio vago
Da água seu pensamento
De alegria, sofrimento,
De desengano ou afago.

Te vejo na lata de erva
Toda coberta de poeira,
Na mão da china faceira
Ou derredor do fogão,
Debruçado num tição
Ou recostado à chaleira.

Me acotovelo no joelho,
Me sento sobre o garrão
Ao pé do fogo de chão,
Vou repassando a memória
E não encontro na história
Quem te inventou, chimarrão.

Foi índio de pêlo duro,
Quando pisou neste pago,
Louco pra tomar um trago,
Trazia seca a garganta,
Provando a folha da planta,
Foi quem te fez mate-amargo.

Foste bebida selvagem
E hoje és tradição,
E só tu, meu chimarrão,
Que o gaúcho não despreza
Porque és o livro de reza
Que rezo junto ao fogão.

Embora frio ou lavado,
Ou que teu topete desande,
Minha alegria se espande
Ao ver-te assim meu troféu,
Quem te inventou foi pra o céu
E te deixou para o Rio Grande.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sem título...

Sem título...
Fernando Pessoa do livro Das coligidas

O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
ou diferente.
O homem não é um animal.
É uma carne inteligente.
Embora às vezes doente.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A flauta-vértebra

A flauta-vértebra
Maiakóvski no livro Poemas

A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balanço.
Em todo o caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
Esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lápide 2

Lápide 2
epitáfio para a alma
Paulo Leminski no livro La Vie en Close


aqui jaz um artista
mestre em desastres

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte

deus tenha pena
dos seus disfarces

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Soneto sem sentido da surdez repentina

Soneto sem sentido da surdez repentina
Belizario, inverno 10.

Surdo!!
Hã?! O que tu falou?!
Descobri uma forma de ouvir o violão...
encostar os dentes ao seu corpo...amplificado!
Só eu escuto...ou acho que escuto...não sei não...
Surdo!!
Hã?! É comigo?!
Naquelas horas em que não aguento mais as palavrinhas,
a surdez vira função esguia! Só escuto o que quero! É, talvez migalhas do que eu quero...desculpa fugidia...
Surdo!
Hã?! Seguir a vida?!
Retomarei minhas amizades,
serei útil todo início de mês,
na fila do banco ou jogando na loteria.
Surdo!!
Hã?! Musgo?! Sujo?!
Não, surdo mesmo! Vai limpar esses ouvidos,
já cansei de pedir,
não te faz de cera,
desgruda,
cansei de ser cotonete nessa vida!!

terça-feira, 29 de junho de 2010

Poema dos olhos da amada

Poema dos olhos da amada
Vinicius de Moraes no livro Nova Antologia Poética

Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus...

Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...

Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus.

Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Violeta, Dama-da-noite, cáctus..

Violeta, Dama-da-noite, cáctus..
Clarice Lispector, trecho do livro Água viva

A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer.

Dama-da-noite tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para quem ama o perigo. Só sai de noite com o seu cheiro tonteador. Dama-da-noite é silente. E também da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguém aguenta. Mas eu aguento porque amo o perigo.

Quanto à suculenta flor de cáctus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que faz a planta desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Instante-já

Instante-já
Clarice Lispector, trecho do livro Água Viva

Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o seu fluxo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

LXXXI

LXXXI
Pablo Neruda no livro Cem Sonetos de Amor

Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como o âmbar dormindo.

Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pela sombra comigo,
só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas,

enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho.

terça-feira, 22 de junho de 2010

***

***
Mario Quintana no livro Velório sem defunto

É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Apresentação

Apresentação
Cecília Meireles no livro Retrato natural

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Irmãos das almas...

Irmãos das almas...
João Cabral de Melo Neto em trecho do livro Morte e Vida Severina

- A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
- A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
- E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
- Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
- E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
- Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
- E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
- Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
- E o que guardava a emboscada,
irmãos das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
- Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
- E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
- Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
- Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
dos intervalos das pedras,
plantava palha.
- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
- Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todos nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
- E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
- Ao cemitério de Torres,
irmão das almas.
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
- E podeis ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
- Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
- E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
- Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
- Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
- Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
- Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Quando encontraram Guevara (Num assobio de Milonga...)

Quando encontraram Guevara (Num assobio de Milonga...)
João Sampaio no livro Para alguns iluminados

Quando encontraram El Che
Era tarde e eu mateava
Lá em cima a lua me espiava
No seu véu que se prolonga
Uma tristeza tão longa
Pateava na noite clara
E eu relembrava Guevara
No assobio de uma milonga...

Sentado sobre o pelego
Olhava ao longe a distância
E sentia a pampa fragrância
Da estrebaria do baio
No relincho desse raio
Vejo uma mãe triste e aflita
Campeando o filho solita
Em plena Praça de Maio!

E como se de repente
Achasse o elo perdido
Meu galpão enegrecido
Se enche de luz num clarão
O vento bufa no oitão
Numa espécie de marulho
E o céu da noite de julho
Orvalha de pranto o chão...

Solito eu sigo mateando
Pitando na noite clara
Pensando em Che Guevara
Que acharam na terra pura
E o povo em sua ternura
Com a mágoa mais caipora
Também se ajoelha e chora
No mais humilde dos templos
Orando em cima do exemplo
Do Che que se foi embora...

Por isso no parapeito
Sobre uma trama me aprumo
E enquanto pico um fumo
Pra tentear com mate-amargo
Converso irmão a lo largo
Com as nuvens do firmamento
Milongueio um argumento
E acho Guevara que a vida
É igual a folha caída
Que vai solita no vento...

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Cheiro de flor

Cheiro de flor
Belizario, outono 10.

Por essa, nem o maior dos poetas podia imaginar!
Ou plagiar em versos,
o amor reencarnado
que não pôde esperar.

Não tarda a infinitude
daqueles que se admiram...
que reconhecem o cheiro...
que se amam...não tarda não.

Lembro-te: foi como um vulcão!
Que adormecido esperava,
em terra cinzenta,
de malogros,
de falta de sintonias...vida amarga.

Jamais terás de minha boca,
o gosto de remorso,
dos que se remoem no por que tudo se acabou...
Não sou promíscuo com o adeus.

Sou como um pássaro...asas...
Tenho quatro patas,
de arco e flecha amolada,
todo avante,
e que não sabe esperar!

No meu peito,
nos meus braços,
levo um cheiro de flor...amada!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Desobedecendo (II)

Desobedecendo (II)
Henry David Thoreau, trecho do livro Desobedecendo

Em todos os Estados que conheço, a principal carência é a de uma vontade superior e determinada para com seu povo. Basta isso para extrair da Natureza "os grandes recursos", e também para sobrecarregar a Natureza para além de seus recursos; o homem acaba morrendo naturalmente nesse processo. Quando estamos mais interessados na cultura do que nas batalhas, e quando desejamos a clareza de espírito mais do que guloseimas, aí então os grandes recursos do mundo são solicitados e usados; o resultado, a produção rentável, não são escravos ou operários fabris, e sim homens - aquelas peças raras tais como heróis, santos, poetas, filósofos e redentores.
Em poucas palavras, poderíamos dizer que, assim como a calmaria do vento permite a formação de um monte de neve, a calmaria da verdade permite o surgimento de uma instituição. Mas logo o vento volta a bater em suas paredes e a desfaz.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O novo

O novo
Paulo Leminski no livro Caprichos e Relaxos

o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol

apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo

sábado, 5 de junho de 2010

Se tu viesses ver-me...

Se tu viesses ver-me
Florbela Espanca no livro Charneca em flor.

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca...o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte...os teus abraços...
Os teus beijos...a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Blefe de dor

Blefe de dor
Lúcio Xavier

Floresci assim...
Tal única
E imensa fronteira subjetiva.
Fiz eu de mim...
Qual serva púnica,
Por medo, permissiva.
Cerrei tua dor
Nos dentes.
Herdei teu cadafalso e cor,
Agonizada de correntes.
Cada passo teu,
Me fremia;
Assim de corpo ateu,
Me escondia;
Jurava vingança.
Mas...
Daquele breu,
Só sobrava covardia!
Criada nesse apuro,
Solitária,
Silenciosa,
Receava no escuro,
Ver a mortalha,
Que um dia
Teceste laboriosa.
Logo tu,
Que te fizeste dor
Todo dia,
Vem agora,
Em estado cru,
Me seduzir pela agonia.
Te espero
Esta noite...
Com ânsia de claridade;
Esquecerei toda vaidade
Que a dias te leguei.
E assim,
Lúcida,
Inventarei outro corpo,
Onde tu pasme lânguida
E percas toda vontade;
Pra que a mim triunfe
Tua morte,
Sem a mínima piedade!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Conselheiro

Conselheiro
Batatinha

Sou profissional do sofrimento
Professor do sentimento
Do amor fui artesão

Mestre do viver já fui chamado
Conselheiro do reinado
Cujo rei é o coração

Quebrei do peito a corrente
Que me prendia à tristeza
Dei nela um nó de serpente
Ela ficou sem defesa
Mas não fiquei mais contente
Nem ela menos acesa

Tristeza que prende a gente
Dói tanto quanto a que é presa
Abre meu peito por dentro
O amor entrou como um raio
Saí correndo do centro
Dentro do vento de maio

http://www.youtube.com/watch?v=MBJnTPOx0Xk&feature=player_embedded

terça-feira, 1 de junho de 2010

Efêmero esquizofrênico

Efêmero esquizofrênico
Belizario, inverno 09

O que é a experiência?
O que é a autonomia?
Pra mim a efemeridade
transformou-se numa esquizofrenia!
Entram no amor querendo sair...
Não se luta mais pelos alguéns...
Luta-se pela solidão!
A esquizofrenia fabrica infelicidade.
Assim como o sexo é potência,
o homem másculo,
a mulher gostosa,
o amor...
virou plástico!!

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Em pleno mês de junho

Em pleno mês de junho
Pablo Neruda no livro Últimos Poemas

Em pleno mês de junho
me aconteceu uma mulher,
melhor uma laranja.
Está confuso o panorama.
Bateram à porta,
era uma lufada,
um látego de luz,
uma tartaruga ultravioleta,
a via com lentidão de telescópio,
como se longe fosse ou habitasse
esta vestidura de estrela,
e por erro do astrônomo
houvesse entrado em minha casa.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Hoje

Hoje
Waly Salomão no livro Algaravias


O que eu menos quero pro meu dia
polidez, boas-maneiras.
Por certo,
um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignoro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)

Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.

não está prevista a emissão
de nenhuma "Ordem do dia".
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP - Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d'água
dão saltos bruscos do cano da torneira
e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
aleatória.

Hoje...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cantar charqueada

Cantar charqueada
Oliveira Silveira no livro Pêlo Escuro

Até eu cantei charqueada
chorando a sorte do boi.

Mas descobri que meu canto
tem raízes noutro campo:
por trás das cancelas mudas,
por trás das facas agudas.

Meu canto é uma carne escura
charqueada a relho na salga;
é figura seminua
junto às gamelas de salga.

Carne escura exposta ao vento
dos varais do saladeiro
exposta viva ao sol quente
e suas facas carneadeiras.

Carne que se compra e vende
e de bem longe se importa
se salga, seca e só perde
quando já é carne morta.

E meu canto é dessa carne
que não é minha e me dói
sangrando no sol da tarde
de um tempo que enfim se foi.

Cabe a mim cantar charqueada
chorando a sorte do boi?

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Nosso tempo

Nosso tempo
Carlos Drummond de Andrade, trecho do poema no livro Amar Amaro.

I

Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Rafaela

Rafaela
Belizario, outono 10.

Rafaela.
Bem vinda ao mundo linda guria.
Ah, não sabes o quanto te esperávamos...
Redenção de nossos sonhos...
tantas vezes embriagados sonhos...
de utopia...
Sentados na calçada,
os pés na pedra úmida...
eu e teus pais ríamos a beça...
Brincávamos...cantávamos...
talvez eles não se imaginassem juntinhos um dia.
Mas tu, a criança que viria,
redentora de nossos delírios,
sementinha pequenina,
de fortes raízes,
que germinaria,
ah, isso escrevemos tantas vezes
nas estrelas daquelas noites,
daqueles dias,
com tinta de luta, amor e rebeldia.
Tua mãe, forte mulher,
caminhava pelas ruas, procurando flores para provar e dizer: tu quer?!
Teu pai, homem adorável,
sensibilidade com a voz,
com os dedos no violão,
me fazia sorrir e insistia: é preciso mudar tudo isso negão!
Vim aqui dizer-te
que estou aqui pro que der e vier,
teus pais, meus irmãos,
tu, minha sobrinha,
é preciso paixão...ah, se é preciso...
Como sagitário guerreiro, a postos sempre estarei,
para quando precisares de um abraço, afago...
um sorriso cúmplice...ou apenas o silêncio em compania...
do teu tio e amigo,
eternamente,
com gosto de flores, violão e utopia.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Nós dois

Nós dois
Cartola

Está chegando o momento,
de irmos pro altar...
Nós dois!
Mas antes da cerimônia,
devemos pensar em depois.
Terminam nossas aventuras.
Chega de tanta procura.
Nenhum de nós deve ter
mais alguma ilusão.
Devemos trocar idéias,
e mudarmos de idéias...
Nós dois!
E se assim procedermos,
seremos felizes depois.
Nada mais nos interessa,
sejamos indiferentes.
Só nós dois, apenas dois,
eternamente.


http://www.youtube.com/watch?v=yBv5bBTzAWA&feature=player_embedded

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A vida vale a pena

A vida vale a pena
Ferreira Gullar no livro Dentro da noite veloz

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena.

como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Devaneio matinal

Devaneio matinal
Belizario, Primavera 09.

Hoje, acordei torto.
Ainda sinto a tua falta.
Me alegra ver,
que pelo menos em meus sonhos
nos reconciliamos.

Ainda há espaço pro sonhar!

Nessa doentia esperança,
manipulação de mim mesmo,
contínuo e descontínuo devaneio...
do verbo amar!

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A lavadeira

A lavadeira
Cora Coralina no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

Essa mulher...
Tosca. Sentada. Alheada...
Braços cansados
descansando nos joelhos...
olhar parado, vago,
perdida no seu mundo
de trouxas e espuma de sabão
- é a lavadeira.

Mãos rudes, deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico
barato, memorial.

Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta
- uma espumarada branca de sabão.

Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor,
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo,
vestindo o quaradouro
de cores multicores.

Essa mulher
tem quarentanos de lavadeira.
Doze filhos
crescidos e crescendo.

Viúva, naturalmente.
Tranquila, exata, corajosa.
Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada no seu mundo pobre.

Madrugadeira.

Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
entre trouxas e barrelas.

Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce
trabalham suas mãos pesadas.

Seu mundo se resume
na vasca, no gramado.
No arame e prendedores.
Na tina d'água.
De noite - o ferro de engomar.

Vai lavando. Vai levando.
Levantando doze filhos
crescendo devagar,
enrodilhada no seu mundo pobre,
dentro de uma espumarada
branca de sabão.

Às lavadeiras do Rio Vermelho
da minha terra,
faço deste pequeno poema
meu altar de ofertas.