Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Que importa

Que importa
(À Iná)
Lobo da Costa no jornal de Jaguarão, Atalaia do Sul, 4 de março 1880.

Qu'eimporta que o mundo diga
Que eu, doido, amei-te sem fé.
Se o mundo é tênue formiga
Que eu posso esmagar com o pé.

Qu'importa que o preconceito
Me atire negros baldões.
Se eu reivindico o direito
Das almas e corações.

Dobrar-me, qual débil vime,
Às convencões pessoais.
É tornar-me réu de um crime,
de um crime por que dou ais!

Por que saio, altas desoras,
A descantar meu amor,
Vibrando trovas sonoras
Qual uma abelha na flor?

Por que o ideal inflama
A minha mente infeliz?
E cruzo por minha dama
As armas de D. Diniz!

Por que descanso a guitarra
Da janela ao peitoril,
E canto como a cigarra
Em noites de manso abril?

Ai, Deus! Se eu não faço bulha
Nem incomodo os donzéis,
Que o diga a negra patrulha
Que passa para os quartéis.

Que importa, então, que os palhaços
Andem ralados por mim,
E queiram fazer pedaços
Do meu pobre bandolim.

A eles, se desconsolas,
Iná, que culpa me vem?
Diz-lhes que comprem violas
E vão cantando também.

Pois, quanto a mim, te asseguro
Que enquanto restar-me ardor,
Hei de cantar-te, eu juro,
As minhas trovas de amor.

Hei de dizer que és um anjo
Vagando no espaço aéreo,
Embora qualquer marmanjo
Suponha que eu falo sério.

Hei de elevar-te em meus cantos
Ao ideal da perfeição.
Encher-te a fronte de prantos,
De rosas, o coração.

Vagar contigo entre as gazas
Dos firmamentos azuis,
Subindo, nas tuas asas,
Ao grande Império da luz.

Hei de, sim!...Porque a desgraça
Não pode aviltar-me o ser.
Não vendo rimas na Praça,
Dou versos a quem os quer.

Mas pretenderem, menina,
Que eu não te ame sequer.
Que vão ditar leis na China
Se não tem mais que fazer.

Que enquanto o calor da vida
Meu terno peito animar,
Te direi sempre, querida,
Que nasci para te amar.


Retirado do livro Lobo da Costa em Jaguarão, de Eduardo Alvares de Souza Soares

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