Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 10 de maio de 2011

Desencantado

Dias desses na beira do São Gonçalo, na caída do dia, uma preta velha se aproximou de mim...abriu minha mão e me entregou um caderno. Reconheci os escritos do Belizario. Disse-me aquela mulher de cabelos brancos: - Mandaram lhe entregar...está sujo de barro porque veio de terra fértil, de beira de rio. Ela encontrou os escritos no mesmo dia em que meu amigo partiu...havia uma folha solta no velho caderno sujo de barro...a descrevo aqui.


Desencantado
Belizario, outono 11.

Cansado dessa gente que insiste,
que aponta o dedo...
que exige de mim sempre um doce gesto.
São os mesmos que me espalham pelo chão...
que com os pés me arrastam...
como vidro preso embaixo do sapato...que grita e ringe...
criam nojo e me vendem feito fruta podre,
a celebrar o desencantado.
Lembram e relembram meus passos infalsos...
os deslizes....os absurdos...
Cada vez que chego ou parto,
necessidade de pés no chão pra quem vive no alto,
baixo a cabeça pra ver onde piso, no descer ou subir do barco...
vejo o espelho d'água e observo...
sou eu refletido, distorcido homem,
que não cabe mais nas mãos de ninguém...
Amarga realidade refletida...
já não junto os cacos...
chuto, embaralho...
celebro a desordem!
Protagonista do acaso...
ninguém senhor de mim.

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