Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O flâneur negro

O flâneur negro
Lucio Xavier

11 de maio de 1874, a escrava Eva Ignácio entrava no terreiro para oferecer o Omolokum prometido a Oxum: Ore Yèyé o! Chamemos a benevolência da mãe. Um dia depois do parto, a Mater Dolorosa trazia o pequeno Rodolpho nos braços: Iyálòóde que me deu o rebento livre, leva livre ele agora pela vida!
Constantemente essa história vinha na memória de Rodolpho. Agora, ali, parado na esquina da Floriano, aos 79 anos, o velho cronista do jornal A Alvorada parecia, definitivamente, entender o significado daquilo. Flanando pelas ruas de Pelotas, parava o olhar nas águas paradas do Arroio Santa Bárbara e rabiscava no seu bloco, caminhos para a crônica do dia seguinte.
Os olhos que escreviam a cidade, naquele instante, se demoraram um pouco mais, além do costumeiro tempo de rememorar tempos. Buscava equivalência entre a sua vida e a vida do arroio.
Do vigor da época de líder operário, do aprendizado dos ofícios da cidade, das letras e dos punhos cerrados, conclamando a organização dos negros, restara a perplexidade diante da lembrança dos banhos vespertinos, dos folguedos e dos recreios de capoeiras e Pretas Minas, às margens do velho Santa.
A memória do flâneur negro, evidenciando a total perda afetiva com a cidade do passado, fundia-se lentamente com as ruínas da ponte de pedra. Naquele exato momento, todos os matizes dos cativeiros, dos palanques, das ombreadas com os companheiros de sindicato, toda poesia, todo o amargo de irromper percursos se reuniam, para apontar o quanto do arroio morrera dentro daquele andarilho.
No entanto, a voz da negra Eva ressoava mais alto e o flâneur, conforme Iyálòóde reservou para aquele filho, decidiu, pela última vez, seguir o curso lento do Santa Bárbara. Naquele mesmo dia, ainda deteve-se, demoradamente, na porta do terreiro da zona da Cerquinha, mas não entrou. Sentiu receio de prometer em oferenda qualquer Omolokum, pois agora, acreditava que nem mesmo Oxum teria forças para libertar aquela cidade, escrava das suas próprias nostalgias.

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