Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Certeza

Certeza
Agostinho Neto no livro Poemas de Angola

Não me peças sorrisos
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas.

Não me exijas glórias
que sou eu o soldado desconhecido
da Humanidade.

As honras
cabem aos generais.

A minha glória
é tudo o que padeço e que sofri
os meus sorrisos
tudo o que chorei.

Nem sorrisos, nem glória.

Apenas um rosto duro
de quem constrói a estrada
por que há de caminhar
pedra após pedra
em terreno difícil.

Um rosto triste
por tanto esforço perdido
- o esforço dos tenazes
que à tarde se cansam

Uma cabeça sem louros
porque não me encontrei
no catálogo
das glórias humanas.

Não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei de passar.

Mas hei de encontrá-los
e segui-los
seja qual for o preço.

Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei
o meu rosto
cercado de ramos de palmeira.

e terei para ti
os sorrisos que me pedes.

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