Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Neoplasia

Neoplasia

Belizario, inverno 11.



Em homenagem a amiga Evinha, que morro de saudades...



Naquela mesma hora, todo santo dia, funcionava como um despertador: eram os milicos com seus gritos de guerra, levantando as ruas e os que dormiam...já se acostumara a deitar pelo menos com um dos pés no chão, era mais fácil levantar da cama e fugir do susto. Já estava na hora. A cafeteira de um gole só... já não a compartilhava com ninguém. Teve época que de bom grado dividia até o pão, mas foi-se o tempo do acreditar... foi-se o tempo da entrega pro coletivo... agora era só ela... só assim sustentava seu cotidiano. Rapidamente corria para a esquina, entrava no ônibus. Descia no centro de sua caótica cidade...um puta cheiro a mijo! Pegara nojo do discurso piegas de gente que gosta de velharia...aquilo era uma montoeira de prédios imundos, de gente suja, chão fedido, a urbe devastadora de vidas e que o passado não vale lembrar... queria o ontem enterrado! Mais um ônibus, chegava ao trabalho. Era pragmática, foi-se o tempo em que ao menos o “copia que vai cair na prova” dava certo e os encerrava em sua metodologia...agora não mais...querem sangue no pátio, no intervalo, na frente da escola... querem sexo, se vendem como canalhas, homem e mulher... querem vício... fazia-se de tudo para o sustentar...até para roubar suas coisas, não havia piedade. Intervalo para o almoço... mexe, mexe, mexe... na ponta do talher feio e sujo já surrado, mistura a mesma comida, repetida e fria, que o estômago não quer aceitar... entregou aos cachorros... era hora de mais um tempo justificando as estatísticas e 'enchendo o bolso de dirigente' como gostava de dizer... afinal, alguém que vivia naquele tipo de cotidiano acreditava mesmo que podia desestruturar o sistema?! Ela não mais... era a própria desestrutura... pegava outro ônibus... mais uma turma... e aquela ainda lhe fazia repensar algumas coisas... pelo menos em como diabos iria dizer que todo aquele esforço não valeria por nada (!!)...senhores, muito mais senhoras... acreditavam que a educação iria lhes levar para algum emprego... no fundo sentia impotência... sei lá, pelo menos saberiam ler...escrever... Voltava naquele embalo monótono e conformado que as ruas do bairro faziam o ônibus bailar...cabeça a jogar com o vidro...sabia que o pior chegara. Enfrentar a cama fria...nenhum abraço pra lhe aconchegar.

Um comentário:

  1. Obrigada pela homenagem! Fico feliz em saber e sentir o carinho... A melaconlia do texto relacionada à nova fase pela qual passamos - da idade, das dificuldades, das descrenças e decepções - contrasta com o que sentimos ao nos lembrar do tempo (que agora até vemos como foi curto e quão longíquo está)... do nosso tempo, aliás... do tempo juntos... e por mais curto que tenha sido, a qualidade de cada momento nos faz ter a certeza de que alguma coisa de tudo aquilo que passamos está presente e é um presente... Saudades mil, armore! Evinha!

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