Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O apito do trem

O apito do trem
Belizario, verão 11.

Amanhecera novamente abafado. A cidade parecia de propósito envolver os habitantes naquela sensação de desespero. Ela acordara novamente com a garganta apertada... o peito também. O bairro carregava aquele sentimento de desconfiança, mas ao mesmo tempo de fascínio com o apito do trem. Contavam que o apito tinha o efeito hipnótico de atrair os desesperados, os entristecidos... para os trilhos, para baixo do trem. Levantara, não lavara o rosto. Com as janelas fechadas olhava a xícara de café... café nada, qualquer pó preto industrial chamado de café... minguado... girava a colher devagar... pensava no antigo companheiro que havia partido nos braços de outra mulher... mais jovem... no filho que vagara noite e dia pelas ruas podres do centro da cidade... onde dormira...se deitara...não o recebia mais em sua casa, já cansara de ser roubada... naquela manhã fazia exatamente um mês que ele havia partido. O pão seco não descia na garganta...fome já não tinha a muito tempo. Os trilhos e suas histórias não saiam da cabeça... tomou um banho... colocou o vestido que a muitos anos já não usava... arrumou os cabelos... maquiou-se... o calor abafado a fazia suar...a maquiagem borrava – Que merda de cidade! Tomou um copo d’água. Sentou na cadeira que compunha os poucos móveis da sala... de uma fresta pequena da janela enxergava os raios de sol. De frente a porta, esperava. De longe, a locomotiva sua sinfonia executava... se levantou, pegou a chave...abriu, fechou a porta. Era o último canto que faltava...a profecia do bairro se efetivava.

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