Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A lavadeira

A lavadeira
Cora Coralina no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

Essa mulher...
Tosca. Sentada. Alheada...
Braços cansados
descansando nos joelhos...
olhar parado, vago,
perdida no seu mundo
de trouxas e espuma de sabão
- é a lavadeira.

Mãos rudes, deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico
barato, memorial.

Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta
- uma espumarada branca de sabão.

Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor,
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo,
vestindo o quaradouro
de cores multicores.

Essa mulher
tem quarentanos de lavadeira.
Doze filhos
crescidos e crescendo.

Viúva, naturalmente.
Tranquila, exata, corajosa.
Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada no seu mundo pobre.

Madrugadeira.

Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
entre trouxas e barrelas.

Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce
trabalham suas mãos pesadas.

Seu mundo se resume
na vasca, no gramado.
No arame e prendedores.
Na tina d'água.
De noite - o ferro de engomar.

Vai lavando. Vai levando.
Levantando doze filhos
crescendo devagar,
enrodilhada no seu mundo pobre,
dentro de uma espumarada
branca de sabão.

Às lavadeiras do Rio Vermelho
da minha terra,
faço deste pequeno poema
meu altar de ofertas.

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