Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lamento Sertanejo

Ontem, fiz as pazes com aquele outro homem negro.
Lembro-me muito bem quando brigamos.
Ele havia ído a Satolep naquelas coisas de poder...reinaugurar um monumento. O monumento estava revitalizado. Um chafariz europeu sob os vestígios do pelourinho, martírio do meu povo e de tantos outros.
Fiquei enfurecido...como aquele homem negro que cantou tantas coisas bonitas dos nagôs, gegês, poderia esquecer de tudo...
Lembro que saí a caminhar...fazia frio...numa bodega ouvi um som...era um rádio...o homem falava...o povo aplaudia...entristeci-me...me lagrimei.
Anos depois consegui perceber que não avisaram o homem daquilo tudo...do que existia ali...depois daquilo, o homem negro foi o primeiro que teve no poder cantando os ditos populares...incentivando-os...respeitei.
Ontem, nos olhamos cúmplices...vi que ele cantou pra mim, eu pra ele...fazíamos as pazes.
O homem negro não precisou fazer discursos...sua música, sua ginga, sua cantoria, era o próprio povo negro, mameluco, branco, colorido...povo esguio...de gente sofrida que não perde fé na vida.
Sabe, ainda acho que eu e ele viemos no mesmo navio...
Obrigado Gilberto Gil!


Lamento Sertanejo
Gilberto Gil e Dominguinhos

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.

Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo.
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário