Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Angelina

Angelina
Lila Ripoll no livro Primeiro de maio

A massa resiste,
rebelde,
indomável,
erguendo muralhas,
de peitos e braços,
às frias espadas,
aos altos fuzis.

A rua tranquila,
tão cheia de cantos,
encheu-se de cinza,
de sangue e de pó.

O povo resiste
e os tiros aumentam.
Protestam as vozes
num vivo clamor.

Respondem espadas,
fuzis apontando,
fuzis metralhando.

A massa recua
retorna e avança
com novo vigor.

Na rua estendidos
Euclides e Honório,
e mais Osvaldino,
fecharam seus olhos,
seus lábios calaram.

As vagas aumentam
de ódio incontido.
E há novos protestos
do povo ferido.

Alguém arrebata
das mãos de Angelina
a verde Bandeira
que ondula no ar.

Os tiros procuram
o peito de Recchia.
E os tiros ficaram
no peito a morar.

Os olhos dos homens
refletem angústia,
revelam paixão.

Ferido está Recchia,
e há sangue no chão.

Ninguém junto ao leme,
ninguém no comando.
Vermelhas papoulas
matizam o chão.

O rosto em tormento,
cabelos ao vento,
retorna Angelina,
mais alta e mais fina.

"A nossa Bandeira
nas mãos da polícia?"

E à luta regressa
com febre no olhar.

Os braços erguidos,
subiam, caíam,
em meio a outros braços,
o mastro a arrastar.

e às mãos vitoriosas,
num breve momento,
retorna a Bandeira
batida ao vento.

Um frio estampido
correu pelo espaço,
na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,
vacila Angelina,
e a flor de seu corpo
na rua tombou.

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