Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sob um céu de blues

Sob um céu de blues
Piqui


É chegada a hora. A hora exata sempre chega. Quando menos esperamos por ela, eis que surge sua magricela sombra pelo ar. Um envelope atravessou a porta. A porta, oca e sem cor, jamais saberia o conteúdo daquela missiva. O segredo se consumava naquele momento. Correntes de ar frio seguiam espalhando-se pelo corredor. As paredes umedecidas escorriam suor pela labuta de existir. Sempre paredes. Sem cor e sem cheiro definido, mas restavam ainda marcas obscenas da vida cotidiana. A mão trêmula apanhou aquela forma insegura levando seus olhos aos quatros cantos do envelope. O destinatário não emitia dúvida alguma que aquilo a pertencia. Selo com a imagem de ... Por um instante a memória apagou-se por inteiro. Vagando horas por infinitos labirintos lembrou-se da mãe. Mas a imagem se desfez num instante. Voltou a si. Pouco a pouco abriu o envelope por inteiro. Naquele momento os olhos pareciam vagar como um velho barquinho de papel sobre a água. Seguiam as palavras em movimento de ondas. Lutava impunemente com a fúria daquela tempestade de significados. Apertou em seu rosto o papel envelhecido. Jamais imaginaria que aquilo era verossímil. Não!Não! Não pode ser. Um suor caiu-lhe pela face. .. deitado no divã via tudo girar. No divã as coisas... metamorfose. Acordou, olhou para o lado e sorriu. Um papel envelhecido, com belas letras desenhadas. Ergueu-se num átimo. Levou a carta a boca e a beijou. O amor restava-lhe ainda, naquelas letras de marfim.

Um comentário:

  1. ... Era verdad, Jorge; era verdad que las letras se mezclan ni bien cerramos la página. He perdido todas las postales que recibí alguna vez, y en su lugar encuentro otras, con palabras que llegan como primera vez y se atan a una memoria que ya no recuerdo si real o asistida.
    No importa.
    Hay una curva, en el fondo de mi instinto
    Que responde a una curva
    en el costado de su cuerpo.
    Un aroma en mis fosas nasales
    recuerdan a mis corpúsculos
    un rincón particular de su cuello.
    Y una carta
    es un corte de papel amoroso
    que me recuerda el color de mi sangre.

    Creo que lo sabe.

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