Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Obdulio

Obdulio
Eduardo Galeano no Livro Futebol ao Sol e à Sombra

Eu era menino e peladeiro, e como
todos os uruguaios estava grudado no
rádio, escutando a final da Copa do
Mundo. Quando a voz de Carlos Solé
transmitiu a triste notícia do gol
brasileiro, minha alma caiu no chão.
Recorri então ao mais poderoso de meus
amigos. Prometi a Deus uma quantidade
de sacrifícios, se Ele aparecesse no
Maracanã e virasse o jogo.
Nunca consegui recordar as muitas
coisas que prometi, e por isso nunca
pude cumpri-las. Além disso, a vitória
do Uruguai diante da maior multidão
jamais reunida numa partida de futebol
tinha sido sem dúvida um milagre, mas o
milagre foi acima de tudo obra de um
mortal de carne e osso chamado Obdulio
Varela. Obdulio tinha esfriado a
partida, quando a avalanche nos caía em
cima, e depois carregou toda a equipe
nos ombros e com pura coragem impeliu-a
contra ventos e marés.
No final daquela jornada, os
jornalistas acossaram o herói. E ele
não bateu no peito proclamando somos os
melhores e que não há quem possa com a
garra nacional:
- Foi casualidade - murmurou
Obdulio, abanando a cabeça.
E quando quiseram fotografá-lo,
virou de costas.
Passou aquela noite bebendo
cerveja, de bar em bar, abraçado aos
vencidos, nos balcões do Rio de
Janeiro. Os brasileiros choravam.
Ninguém o reconheceu. No dia seguinte,
fugiu da multidão que o esperava no
aeroporto de Montevidéu, onde seu nome
brilhava num enorme letreiro luminoso.
No meio da euforia, escapuliu
disfarçado de Humphrey Bogart, com um
chapéu metido até o nariz e um
impermeável de gola levantada.
Em recompensa pela façanha, os
dirigentes do futebol uruguaio deram a
si mesmos medalhas de ouro. Aos
jogadores, deram medalhas de prata e
algum dinheiro. O prêmio que Obdulio
recebeu deu para comprar um Ford modelo
31, que foi roubado naquela mesma
semana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário