Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

terça-feira, 20 de abril de 2010

Papelão

Papelão
Belizario, primavera 09

Sentiu os pés gelados, tentou puxar um cobertor... reação às memórias do que um dia foi uma vida a dois...a três...a quatro. Numa casa modesta, onde mesmo que o vento frio passasse pelas brechas entre madeiras, podia se aquecer com os outros corpos deitados ao seu lado... sua mulher, seu filho, sua sobrinha que havia perdido os pais e que ali ficara persistindo na vida. Agora restava o papelão. Não reclamava, buscava estratégias no dia pra buscar um melhor lugar pra dormir, algo pra se cobrir. Naquele dia só restara o papelão. Quando ainda era dia, o havia virado do avesso e tinha escrito: poesia... do que um dia foi sua vida. Desabafos virados do avesso, pois ele sabia... ninguém que passava por ali, mesmo aqueles que o olhavam de canto de olhos e mostravam piedade ou indignação, ninguém! Nenhum deles o ouvia! Numa noite acordara com o céu em chamas, lembra apenas de grunhidos abafados... a mulher...a sobrinha...o filho...a loucura...a rua...ideal de trabalho, ideal de família, tudo isso ele conhecia, mas não fazia mais sentido, escolhera abrir mão...cavalgar a própria vida. Mais uma manhã em Porto Alegre, dos navegantes tristes das ruas... gente que ainda persiste, que ainda sonha...e no avesso, ainda escreve poesia...

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