Ainda lembro do cortejo...a cantoria triste...minha roupa branca de condenado no contraste com a minha negra cor...aquela criança não sai da minha cabeça...caminhava curiosa ao meu lado, no compasso do tambor do militar...a marcha era fúnebre...alguns aproveitavam o momento para fazer dinheiro...o Mariano era um deles, sonhava com um bom pecúlio e a alforria um dia comprar...para mim isso já não bastava...logo depois da primeira chibatada, apaguei...acordei com os gritos de quem me delatava...senhor e senhora no chão...ainda corri...mas sabia que logo minha passagem por aqui estaria acabada...da cadeia para a igreja...logo a ponte sobre o arroio onde tantas vezes acompanhei o pôr-do-sol...e lá estava eu subindo os degraus...o homem da religião do rei na minha frente aos prantos fingia seu interesse por minha alma...e eu fingia não ter medo...quieto...sofri...o rufar dos tambores...meus olhos se fecharam...logo estacionou o barco...finalmente livre...naveguei...como o tempo, tornei-me múltiplo...resisti!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Terça-feira, pós feriado.

Terça-feira, pós feriado.
Belizario, verão 09.

Terça-feira, pós feriado. Sempre da mesma forma encarava o abrir daquela cortina de aço. O estrondo, a lembrança irritada de colocar graxa... poderia começar com menos barulho, com menos estardalhaço. Olhou os livros, tanta coisa que havia absorvido, tantas histórias. Até hoje entra em crise, suas maiores vendas são os Best Sellers de qualquer gente pra qualquer pessoa. Jamais havia pegado um deles. Sua relação com estes livros era simples e pontual: ganhar dinheiro. Largou sua bolsa na mesa, caminhou até o banheiro da loja e passou a preparar o chimarrão. Era dia de conversa, de receptar as histórias dos amigos, clientes... sabia e já havia confessado, não suportava a maioria. Mas gostava daquela posição: receptadora e transmissora de histórias. Talvez por aproximar-se dos sessenta, tanta coisa experienciada... papel de velha, de anciã já não a incomodava, só não tinha mais paciência. Dos jovens a rebeldia, pretensões de poetas, de fazer poesia; dos velhos a acomodação, os bichinhos, a televisão. Ainda lembra da última menina que apareceu e após uma pergunta gentil, cotidiana, daquelas que se faz para ser simpático com o cliente, ouviu: sou poetisa, escrevo coisas, quer olhar?! Não suportava mais crianças com suas anedotas de adolescentes... como se sua dor fosse única, não fosse do mundo. E o que falar dos velhos! Em sua maioria, chegavam , sentavam, com ou sem jornal em mãos comentavam notícias, julgavam parentes, reclamavam da vida e finalizavam sempre da mesma maneira: “O mundo mudou!”... e claro, sempre pra pior... arrogância dos mais velhos... saudosismo barato! Muitas vezes havia pensado em fechar a loja, mas não conseguia, não imaginava viver apenas sob as sombras de seu apartamento. Também já pensara em sair, viajar, mas não se permitia. Havia perdido todos a sua volta, havia feito a opção pela loja. Assim passava os dias: ganhando dinheiro, receptando e repassando histórias. Não as dela, destas quase ninguém sabia, só a dos outros, algumas interessantes, outras pelo menos serviam para um sorriso, para se sentir mais viva, menos morta. Terça-feira pós feriado, logo fim do dia, suspiro, apaga a luz, fecha a porta.

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